Nachos e futebol à parte, este pub é um ponto de encontro e despedida, e Oxford é uma cidade regida pela mão invisível que às vezes muito aleatoriamente nos atira uma dessas duas sortes: há sempre alguém novo e sempre alguém que está prestes a ir-se embora. Vim aqui a demasiadas festas de despedida de amigos para poder verdadeiramente simpatizar com este sítio. Até à estação de autocarros é uma caminhada de 200 metros e não é raro ver um grupo que se junta para a última cerveja antes da última corrida até à estação de autocarro, ajudando a arrastar sacos e malas, e aí invariavelmente o autocarro é o The Airliner (Gatwick, Heathrow) ou o National Express 737 (Luton, Stansted). Um coro de gente bêbada e vagamente chorosa, por vezes aos gritos ou a rir-se debaixo da chuva torrencial, casacos, chapéus de chuva, malas, mochilas, maletas, sapatilhas debaixo do braço, chão esburacado e lama e depois um abraço demorado, risos, e depois silêncio, cara composta, e depois o motorista do autocarro berra, “Ói, lóve! North terminal or south?”, e aí conversa acabada. Nós, que somos leitores, podíamos citar aqui os poetas, invocar a protecção da ironia e era aqui mesmo que íamos deixar cair aqueles versos, Billy Collins, “Aimless Love”, “but my heart is always restless, always ready for the next arrow,” e é então que entendemos que nenhuma protecção é possível, e que nunca vai haver elegia que nos valha, apenas tentarmos aprender bem a alegria das chegadas, os rituais por que ela se anuncia, o trabalho planeado das longas viagens, das conversas que se arrastam noite fora e que nunca vão durar que chegue, e vão ficar sempre em suspenso, as conversas que podemos ter apenas com os melhores amigos.
O público dos coffee concerts que frequenta o Vaults & Garden é essencialmente de três tipos, os turistas, que são sempre mais ou menos um corpo estranho aos concertos (há, claro, um núcleo de habitués, caras conhecidas que se repetem mais ou menos todas as semanas), os madrugadores (o Vaults & Garden abre mais cedo do que o King’s Arms), e aqueles que assistem à missa e, um pouco mais tarde, ao concerto.
Mas nós não vamos à missa, o nosso ritual é mesmo a música, e raramente madrugamos ao domingo, por isso quase nunca pomos os pés no Vaults & Garden, e é ao King’s Arms que nos dirigimos. O King’s Arms é contíguo ao Wadham College (uma das salas do pub chama-se mesmo Wadham Room) e as paredes estão forradas de fotografias de Graduation Ceremonies de sucessivos anos e é preciso fazer um esforço para não nos sentirmos perturbados por uma das fotografias que ocupa o lugar de destaque, a do (então jovem) príncipe Carlos num fato cinzento a tirar um pint de cerveja. Da primeira vez que entrei no pub olhei para o fotografia de relance e, por qualquer lapso freudiano, pareceu-me que se tratava de uma imagem de George W. Bush. Desfeito o engano, há apenas uma fotografia em que não estou certa de não constar uma imagem de um político americano famoso: uma das fotografias mostra um grupo de rapazes e raparigas a comer pies e uma das raparigas parece-se bastante com a jovem Hillary Clinton, se bem que quem conhece os pubs de Oxford sabe que este não é o pub certo para procurar memorabilia do tempo em que Bill Clinton foi Rhodes Scholar em Oxford, mas não se está longe, é andar uns trezentos metros por Holywell Street, e virar à esquerda na placa que anuncia a Turf Tavern (sem a existência desta placa o lugar nunca seria encontrado). Uma outra placa dentro do pub disputa a possibilidade de Clinton ter travado um charro na década de ’60, neste mesmo pub. É um pub que não me agrada particularmente porque normalmente está cheio de estudantes e turistas, as cervejas são bastante comerciais (numa cidade que tem uma tradição que nunca mais acaba de produzir cervejas artesanais e onde existem uma série de marcas locais) e a comida tem exactamente o mesmo tipo de sabor do café que ali se serve – e isto não é um elogio.
No King’s Arms o café que nos servem com o bilhete do concerto é café de filtro, café com nostalgia de chá, e se a mentalidade portuguesa a princípio sente isto como uma ofensa, uma das coisas que esta cidade aos poucos nos tira é o hábito de beber expresso – o melhor sítio para beber esse tipo de café talvez sejam os cafés dos árabes e dos libaneses em Cowley ou o The Missing Bean em Turl Street, um daqueles lugares em que a oferta apareceu por causa da procura, porque é uma das várias coffee shops que ficam a apenas um quarteirão de distância da Bodleian, a principal biblioteca da universidade. A diferença entre o The Missing Bean e quase todos os outros (com excepção da Turl Street Kitchen), é que posto entre uma loja de brinquedos (e de toda a espécie de bugigangas de colecção) e uma livraria em segunda mão, de alguma forma ela ocupa o ponto "entre" na paisagem do imaginário da infância e da juventude. E se vos está a passar pela cabeça que me esqueci de mencionar o café dos Portugueses em Covered Market (não muito longe do The Missing Bean), que tem um aspecto de dinner e se chama Brown’s Caffè (?), tirem daí o sentido, não só o café não é melhor do que o do The Missing Bean, como nos vamos sentir ofendidos pelo pastel de nata que, por reflexo condicionado, não conseguimos deixar de comprar com o café. Se é de um café e de um pastel de nata que estamos à procura, mais vale pedalarmos a distância razoável até quase ao fim de Abingdon Road e irmos ao AkiPort Shop & Café. O espaço é tal e qual aquilo que o nome promete, mais a impressão que a década de oitenta entre os Portugueses vai viver para sempre. Homens de bigode e permanente, criancinhas de vestidos de algodão cor-de-rosa e de brincos de ouro e louras platinadas de argolas nas orelhas e vários anéis nos dedos. O café é Camelo (nunca o nome da marca foi tão adequado) e é bem possível que este seja o melhor sítio para comer pastéis de nata 1400 milhas a norte de Lisboa.
No King’s Arms, antes do concerto, bebemos café com o G. e com a S. Ele é professor na universidade e é comum viajar durante a semana. A última viagem dele foi à Índia, e explica-nos que os bairros pobres de Delhi não são piores do que os que ele viu em Atenas. Má nutrição, poluição, doenças endémicas e uma esperança de vida que não ultrapassa os cinquenta anos de idade. A diferença básica, assim posta enquanto o café nos aquece as mãos, entre ricos e pobres nas nossas sociedades mais igualitárias.
Uma das coisas que ninguém nos explica quando compramos um bilhete para o concerto é que há dois espectáculos para serem vistos. A música por um lado e o modo como as pessoas reagem à música por outro. A sala é um semicírculo, de modo que, a parte da plateia que não fica diante do palco, fica de frente para o outro lado da plateia e de lado para o palco. Há três anos que é sempre a mesma pessoa que nos entrega o nosso bilhete na bilheteira (fica reservado de semana a semana) e eu não sei o nome dele, mas ele encontra sempre os nossos bilhetes sem que seja preciso indicar nome, morada ou mostrar-lhe um documento de identificação. Exceptuando nas alturas em que somos nós a viajar, ele está aqui sempre, de semana a semana, e em três anos, houve apenas uma semana em que não foi ele a entregar-nos o bilhete. Ele tem, claro, sempre uma piada acerca do tempo. Na Primavera pergunta-nos por que é que com este tempo viemos ao concerto, no Inverno diz-nos que o tempo está magnífico e não entende porque não ficamos lá fora. Às vezes, há situações que inesperadamente continuam de uma semana para a outra. Como quando há três semanas um homem vestido com um fato preto e uma gabardine preta distribuía panfletos para o concerto da British Chamber Orchestra no Sheldonian (o hall de cerimónias oficiais da Universidade, que na verdade funciona como tudo, como sala de conferências, de teatro, de ópera e, claro, de concertos). A S. aceitou o panfleto e não pôde deixar de fazer notar ao músico que ele parecia um mórmon. Na semana seguinte era uma mulher que distribuía os panfletos da British Chamber Orchestra, entregou-nos um, queixando-se que na semana anterior alguém fizera notar que o marido dela parecia um mórmon.