um copo de vinho pedido na vertical

senhor v. tem razão, há coisas muito miudinhas a que vamos a nos tornar, nos apegar. 

gosto, por exemplo, de reler ‘manhãs desperdiçadas’, dá vontade de comprar cigarros industrializados e fumar, fumar, fumar, até poder arrancar o cancro na unha. 

há coisas ainda bem mais miúdas, como a frase ‘está um frio a mais’. um frio a mais também é um cancro que me cresce na garganta, o desejo de uma pastilha muito fina sobre a língua pastosa da manhã. 

(detenho-me na primeira frase – e não sei que diabos fazer. decido-me a tomar um carro de aluguel e ir até à praia. levanto as mãos bem alto para trazer a chuva mais pra perto, como nos pés molhados e o suor no solado de borracha gasta. decido-me a subir quatro léguas ao mar e ver a manhã nublada na água a abrir o mais fundo o corpo e ainda mais. ali um riso, ali uns dentes e ali umas palmas muito contidas de quem quer bater e não bate. decido-me os rasgos e desvios. 11h30 não parece uma boa hora para dizer o que não pode ser concreto, uns filhos a cuidar, uma gente a cuidar e toda gente se conhece. decido-me a outro carro de aluguel e um mortal-triplo pela chuva acima.) 

há ainda coisas graúdas a que não se deter, senhor v., o caroço da manga no prato, o caroço do abacate no prato, uma xícara imensa que não deveria se dizer xícara cheia de xocoatl bem quente. esse cancro que me sobe ao céu da boca. 

a senhora do almoço pensa, um conto do pavese com o nome da ex-mulher que já é de novo sua mulher e então é isso: o amor nos distrai a todos das importâncias e nos torna tão delicados e tristes. coisas muito graúdas - e também das desimportâncias que não estão no roteiro, é certo. e já a altura de dizer não, um rimbaud imenso de graúdo se nos coloca no peito, com toda delicadeza. 

a mochila pesa. 500 gramas da primeira carta de sêneca e sua urgência. 200 gramas de um calixto e sua morfina. a mochila é um aglutinador do tempo, eles vivem esse meu tempo desperdiçado, vivem eles o meu mesmo tempo. tenho cá os dois e um espaço entre eles, o que é este espaço desperdiçado? um movimento que não faço, um acontecimento é o que meus dedos tocam, o que me veem os olhos. 

a senhora do almoço me deu a importância de um corpo inteiro. um copo de vinho pedido na vertical. e coisas muito miúdas e muito graúdas. detemo-nos na distração?

[Perfil de Nina Rizzi na Enfermaria 6]

Pastoral da Ribeira

uma casinha incendiada surge no prédio ao lado
o rio cobre as vigas e pedras e cimento e pó
sob o rio se eriçam casas-lama os homens prontos e um emprego
trilhos e pregos e gente balouçam na casinha incendiada ao lado

afunda os pés de brincar co’ ua nanã que ri o ferro que afunda largo
um afogamento pronto pra uma cidade que nasce com seus homens fortes
na peneira a colher demora a massa e mofa e demora a massa
o fogão de barro submerso no lugar que nasce

acena um oi para a gente que vem incendiada
arde o fogo e a água a pedra e ferro da gente que vem

olha pra a direita      mais adiante
folhas de palmeira pra palhoça um pouquinho de amianto
entulho e câncer e as cabritinhas tão bonitinhas ó as galinhas
cisca cisca cisca

ôôôôôôôôôôô
camisas numeradas regatas largas e de manguinhas

uma cidade emerge submersa
uma ponte metálica de madeira uma ponte
escaiada caiada com luzinhas pra piscar e muda muda
olha a novacor de dez em dez segundos

um conjunto habitacional popular há quase cem quilômetros
da gente que levanta e nasce uma cidade submersa
sete prediozinhos de três andares pra amontoar a gente
saída de uma favela onde se gritar um estádio de futebol

ôôôôôôôôôôô

uma cidade surge submersa no prédio ao lado
é tanta gente é tanta gente e tudo que sente e faz a gente

incendeia, amor

incendeia
 

tipitaka, em lugar de poesia

1. 

as ruas do mundo se oferecem na fedex 
um prozac, um sabonete 
usado com pentelhos grudados 
embora gaste dentro esse sotaque 
eu nunca fui pra califórnia 

do outro lado da rua os correios 
- enviar uma carta de 110g. 
sai por 6,72 
                        a minha miséria também é sua 

eu me jogaria do 8º andar 

o chão quente do centro 
chega à sola de todos passantes 
eu não tenho nenhum centavo 
para o almoço, para os cigarros 

uma moça me entrega diamba 
os versos de mombaça me estalam 
um metrô que não funciona 
a calcinha tão pequena que me rasga 

penso em partir para outro sítio 

cantar os meus mortos 
é atravessar um campo de neve 

 

2. 

um verso me martela 
abandonar o território conquistado 

o homem antigo barbado e com óculos 
é só um desenho manchado 

as pessoas se abandonam 

talvez o nome puro, qualquer nome 
fosse mais que desejo 
ou menos mais ou menos 

em sarajevo toda criança tem a pele coberta 
dum cheiro ocre 
os muros parecem dizer i adore you 

lá sonhei com duas árvores 
uma delas africana 
eu e concha como coisa única 
nunca existimos, nem novokuznetski 

tenho a ousadia de dizer 
meu nome, qualquer nome 

é madrugada 
nenhum barulho de gente trepando 
nem nas janelas ou ao meio-dia 

úmida, úmida 

 

3. 

estive no templo 
por alguma razão que não busco entender 
eles cobravam entrada 
do lado de fora fiquei a olhar 
os pés retorcidos e a cenografia do desespero 

lembrava 
as duas sujeitas propondo cultos 
– você tem cara de crente 
você daria uma ótima crente 
eu daria apenas, e sigo a dar uns olhos de encruzilhada 
essa vingança em ser mortal, ser o que quiser 
conquanto palas e deuz e anúbis sempre eles 

a cara do desastre 
ser o que quiser desde o caminho da miséria 
e a duração do que não pode permanecer 
o templo, a ruína 
em lugar de poesia 

. oráculo