Dois Poemas de "Oxus" de André Tomé

DENTRO

em criança primeiro disseram-me que dentro
do búzio existia o mar
depois o mundo
sem que me explicassem então
o que existia dentro do mundo
e toda a infância foi essa descoberta tácita
entre o que está fora e o que está dentro
numa caixa de fósforos estava um incêndio
dentro do corpo de meu pai a doença
mas nunca ninguém me disse o que estava realmente
dentro
se o amor
se mais amor
cresci e li como alguns filósofos militares
diziam que o que está a este do oxus
é o que está por dentro
e que dentro de toda a espiritualidade
está um corpo
e que dentro desse corpo estamos nós
deus morreu para mim nesse dia
quando me explicaram que dentro
de nós está o pecado
e dentro de deus
– queriam dizer amor
o que nos salva
percebi à décima idade que deus
não estava dentro mas no lado de fora
entre a liturgia e o texto
escapava-me o que estaria dentro de cada um
para que não existisse união
e voltei a perguntar o que estaria dentro
o segredo proveio da ignorância
de Diogénes sentado no passeio
ou de siwa sentada no deserto
eis que de nenhuma idade se aprende
que dentro de todas as coisas
está o que está dentro de nós
aqueloutra verdade acidental de que vivemos
com aquilo que nos dizem
pouco duvidando
como se fosse a certeza
de que esses outros filósofos saberiam
que a existência dentro de uma caixa de um só fósforo
é o que está a este do mundo
e o que está dentro
tão dentro como a este do oxus
um só rio calamitoso que lá fora corre
a todo o momento

 

LUX IN LIBRIS 

que documento antigo nos falará do coração
das tentativas de enxertar a árvore com a costela do meio
e com aquilo que foi numa outra terra e numa outra ainda anterior
o pecado imaculado de pensar falando
sem o utensílio e o ornamento de dizer fiat lux
oferecendo às mães a árvore e não o fruto
que nos levará de novo à claridade?

 

Oxus  de André Tomé é o mais recente livro da do lado esquerdo. O lançamento será no próximo sábado, às 18.00 na Livraria Alfarrabista Miguel de Carvalho. A apresentação está a cargo de Ana Salomé. Mais informações aqui

 

O livro de Jón e uma Língua que não era a sua

É um livro, mas são cartas, mais precisamente 28, escritas por Jón, personagem fictícia e real, à sua mulher Þórunn. Ambos separados por uma ilha, ela no norte, ele no sul, onde se refugiou numa gruta após ser acusado de assassinar o abade que era seu superior e simultaneamente marido da mulher com quem veio a casar. Jón, o pastor sem congregação perseguido por obscuros rumores e que se diz ter realizado um milagre ao desviar um rio de lava, é ainda um desconhecido que chega com o seu irmão a um local estranho, um homem que passa a ser visto com mais suspeita do que aquela que lhe mereceria apenas a deslocação para terras mais meridionais devido às suas ideias, às melhorias que introduz na gruta e nas terras que pertencem por direito à esposa e, sobretudo, aos seus planos optimistas para uma nova Islândia livre do jugo e do monopólio comercial dos invasores dinamarqueses, tema recorrente na literatura histórica islandesa, onde o veio nacionalista se funde com o orgulho de um povo. Rumores, ideias, planos: são estes últimos aquilo que mais partilha com Skúli, seu frequente visitante, também ele – como muitos neste livro – um homem de carne e osso antes de o ser no papel, o meirinho geral que deseja reinventar a Islândia e torná-la um país independente e exportador dos mais variados bens.

                  O livro de Jón é, na sua língua, um romance sobre Jón, e se o último é o mais irmão à originalidade que lhe compõe o título, o primeiro não lhe será menos fiel, pois este é um livro sobre e de Jón: ele é o narrador presente, o autor das cartas, é ele quem nos descreve a Islândia, os episódios bizarros, o clima, as viagens, as suas frustrações, desejos, crenças, ideias filosóficas, desilusões, enquanto somos leitores e, simultaneamente, Þórunn, essa mulher amada e abandonada num período de angústia, num país em que – no ano maldito de 1755 – a terra treme e a lava corre em rios.

Ófeigur Sigurðsson.jpg

A escrita de Jón, que é, por sua vez, também ele Ófeigur Sigurðsson, é um misto de crença nas ideologias e na religião transmitida de geração em geração e das luzes que se fazem sentir na Europa, tardiamente chegadas a uma ilha remota nos confins do mundo habitável; Jón não esconde essa dualidade na sua escrita, nas cartas que envia, feitas de frases longas, onde se usa e abusa da /barra/, composto por afirmações e interrogações longas, repletas de referências culturais islandesas e europeias que tornam difícil a vida ao tradutor de um livro que, com poucos anos de impressão, têm na linguagem o peso de mais de três séculos e a distância de um mar que o separa de um país marginal mas unido ao continente que ambos partilham, tornando o seu trabalho pesaroso, extenuante, envolvente, duros de meses sentados a secretárias dolorosas.

                  Felizmente, para o leitor português, O Livro de Jón será bem mais fácil e celeremente tragado em toda a sua beleza linguística e sumarento conteúdo e, certamente, lido em peças de mobiliário que unirão o conforto da leitura ao das costas…

Dois poemas de "Fonte Breve" de João Miguel Henriques

estranho o livro
estreita a fonte e dura
a minha fronte sobre o livro

os livros inteiros
em magotes acesos
incendiariam as ondas

*

dançam as aves, crêem
ter-se ido já o gelo frio
assim do logro nasce o canto
do engano um corropio
de penas sobre o duro manto

 

Fonte Breve de João Miguel Henriques, é o mais recente livro da Tea For One.