Onde é que tinhas começado?

A., há uns dias, disse-me, "I can drink bad tea, but I would never go for bad coffee". Reparo, pela primeira vez, muito devagar, em A. A. é uma alemã seca, pequenina, que passa longas horas imóvel no canto de uma biblioteca. A. tem um trabalho muito difícil e (desconfio que) muito mal pago, que será apreciado talvez por uma vintena de pessoas no planeta e que será verdadeiramente reconhecido talvez por três ou quatro (em revistas muito da especialidade). A., em teoria, mais uma criatura banal, como eu e tu, talvez alvo de um desses génios predatórios e oportunistas que nos tentam atirar merda pela goela abaixo a cada dia, todos os dias. Às vezes,nela um sentido de humor muito cruel, mas quase como o de uma criança, que não controla bem a própria força e, assim, encena a única resposta que pode a forças que ela sabe que não pode dominar e que, sobretudo, e esta é talvez a sua maior fonte de angústia, ela não entende completamente.

E neste ponto cego, ela rejeita o que não pode perceber inteiramente e ri-se como quem se vinga. Uma vontade desgraçada é uma maneira de traduzir isto, esta coisa que se pode pressintir em A., em mais um punhado de gente. É este o seu trabalho no escuro, mãos de aranha e tudo. Com uma cabeça de filóloga, esta é talvez a sua arte mais óbvia. Há qualquer coisa nela de vagamente embrutecido, de insondável, e, as duas de cabelo muito curto, estrangeiras num país estrangeiro, agrada-me pensar que nos parecemos.

À medida que ficamos mais velhos, somos cada vez mais indisponíveis, mais impacientes. Um corpo, de repente, percebe-se como vai acabar por guardar a indiferença impaciente e desligada dos velhos. Mas existe a hipótese de nos recusarmos a tomar parte disto antes desse tempo. De recusarmos essa resignação. Li não sei onde que não há como amar uma abstracção. Não se pode. O nosso amor procura sempre coisas mais concretas, pessoas, coisas, as coisas que construímos com as nossas mãos. Nada de "corpo" ou 'metáfora" ou "estrutura".

A citação inspiradora de A. para hoje era de Flaubert, ele dizia que não era pelo prazer, que não era para aprender (ou para ser educado, expressão que um editor preferiria), mas para viver. Flaubert, que não se expressava de acordo com a imagem pretendida, mas que falava de ler. 

Não sejas estúpido!

Cnossos, a beleza do perigo necessário

Cnossos, a beleza do perigo necessário

Não sejas estúpido, está bem?!

Claro que está! Está mais que bem, mas isso depende de mim?

A sentença não era imperativa, já a tinha visto usar as mesmas palavras com imensa ternura, ou para fazer conversa enquanto pensava num algoritmo ético que revolucionasse a economia digital. Mas agora era a mulher mais bela, exacta e alta do mundo. Tinha conseguido isso através de um favor (algumas biografias referem “vários”), e, para repor a ordem cósmica, muitos deviam ser esmagados ou cortados em pequenos fragmentos e disseminados pelas ruas mais sujas de Lisboa.

Os argumentos que usei sobre a falta de essencialidade da estupidez (“só há processos de estupidificação”, lancei em aprumada pose), justificando-me com Tatiana Faia, que escreve, depois de Goethe, ([…] do princípio é / uma mentira dizer / que aí era o logos no / princípio éramos nós / e nós apenas e nenhuma razão […]. Teatro de rua), esgrimindo com as mais rebuscadas teorias cognitivas, zurzindo nos testes de QI, desconstruindo os brilhantíssimos intelectuais que sustentam Portugal a golpes de crónicas... Tudo isso foi uma perda de tempo (que é sempre um perda de dignidade).

Os seus braços de cutelaria luxuosa, longos, brancos, afiados, foram anulando todas as possibilidades de a atingir com a lava da compaixão, cura homeopática, arrebatamento do consenso contra o do dissenso. À medida que percebeu melhor, com aquele seu olhar de águia em treino, de como eram inofensivos os meus ataques semânticos, enchia-se de desprezo e procurava encerrar a ridícula disputa que ganhara sem esforço. Foi a sua vez de citar Tatiana: “[…] a forma mais perigosa de atenção / é que percebas e te calhe / essa ternura em queda / em diminuendo / o conhecimento de um homem em estilhaços […]. (Idem).

Como sou, por enquanto, o dono do texto, poderia imaginar uma vingança horrenda (toda a história ocidental é pontuada pelo combustível da vingança), mas soaria a falso, sabemos que uma mulher assim é capaz de renascer num novo brilho cruel apagando “as coordenadas anteriores”, ela não precisa de puxar dos galões, subir para cima dos seus próprios ombros para ver mais longe ou dobrar a verticalidade de uns quantos audazes que se atrevam a olhá-la de cima para baixo. Basta-lhe existir e mostrar os braços.

Eis o problema: o “autor” só subsiste enquanto não aparece uma rebelião hermenêutica que o põe no lugar do morto, lhe diz, com a voz da vida verdadeira, para não ser estúpido, não inventar esses planetas de brincar. Resta-lhe, no campeonato da consolação, e com uma jogada de antecipação – que se for também ela antecipada, necessita maior recuo... e assim até ao infinito, até que a consciência lógica grite de dor – reinventar em cada instante aquilo que Tatiana Faia plasmou em papel analógico, que já foi vida, majestosamente quase estática: “[…] já que há tudo a perder mais vale / querer cada vez mais […]. (Idem).

para um estudo do silêncio acompanhado

Aprendi a não dizerfalta-me aprender a não pensar. Para deixar de pensar preciso de pensar tanto que não sobre nada, boicotar o esquema por dentro, infiltrando-me no pensamento, que hei-de armadilhar e fazer explodir. A seu tempo. Sabemos hoje, porque o lemos em livros, que faz parte do Caminho sairmos do Caminho.
Sabemos, porque falámos sobre isso vezes sem conta, que um erro deixa de ser erro se o soubermos viver. Desconfiamos que a deriva nem sequer existe desde que nos deixemos levar sabendo que voltaremos e que, se não voltarmos, não há problema. 
A minha aprendizagem é como aquele desenho no vidro embaciado de um carro: uma montanha de onde se cai sempre menos. Quando se volta atrás nunca se volta tão atrás. O silêncio também é uma vaidade. Um dia direi: começou por ser vaidade, o meu silêncio. Não percas a tua cidade estrangeira, é esse o meu conselho. Ninguém gosta de encarar a vida como se de uma Viagem se tratasse, porque é ridículo. Todo o misticismo deixa o homem desavisado de pé atrás. E, no entanto, nada faz mais sentido do que esta ideia de passeio, que por ora deve ser expressa com cuidados literais e traçados realistas, a fim de evitar a rejeição precoce. Não percas a tua cidade estrangeira.

A moral certa

Em 1951, numa publicação intitulada Comício, Teresa Quadros dispensava conselhos  «sobre como adaptar o perfume que usamos a diferentes ocasiões» ou «usar jóias com uma certa classe» ou ainda «para ajudar as mulheres a acalmarem-se». Mais de cinquenta anos depois, Gonçalo M. Tavares escreveu as Breves Notas Sobre o Medoum pequeno livro onde se inclui um texto chamado «A moral certa», que parece piscarolho a um certo Proust (citado em Príncipes Reais). A ideia: a de que nos juntaremos sempre a quem tenha o «mesmo grau de confusão». Se numa mão temos uma autora feminina (não confundir com feminista) entregue ao supostamente fútil, na outra temos um autor (não confundir com deus) entregue ao pensamento.
Não é, no entanto, de nenhum deles que vou falar – e o que quero dizer, hoje, é mais ou menos breve. Desconfiando desde há uns meses que toda a gente (toda, mesmo) é igual, descobri finalmente a importância do meio. Quero dizer: tenho um amigo que é um leitor ávido, um homem curioso, de boa memória, sempre com uma resposta tão inteligente quanto bem humorada na ponta da língua. Para além disto, tem bom ar e juventude que chegue para uma vida generosa. Quando nos sentamos para falar é evidente que a coisa vai demorar: se ele acabou com a namorada ou se eu tenho problemas no emprego, é certo que vamos gastar horas na centrifugação de tudo quanto pode ser pensado sobre um único tema. Se por acaso tivéssemos mais do que um problema num dado momento creio que seria preciso uma semana para que tudo ficasse dito. Se o tema for a namorada vamos falar de clássicos russos, de filósofos alemães, de poetas portugueses, de deusdo diabo. Quando o tema for o meu emprego falaremos das rabidantes caboverdianas, do sol na Índia, de contos zen, da imaginação que deverá sempre ser maior que o entendimento. No fim, animados mas sem ter dito tudo quanto poderia ter sido dito, teremos que continuar vivos – e sem soluções.
Simultaneamente, há um mundo paralelo onde as coisas acontecem, exactamente da mesma maneira, sem tanto uso de palavras. Um mundo onde as namoradas acabam com os namorados, onde os empregos são miseráveis, onde Kafka soa a marca de tabaco, onde na música o horizonte é a RFM, onde artes plásticas são «isso até eu podia fazer, fôda-se», onde as coisas se arrumam dizendo que ela é uma cabra, que uma andorinha não faz a primavera, que a vida continua, que vai ali uma gaja boa, que hás-de arranjar trabalho, e que fizestes [sic] o teu melhor, destes [sic!] tudo o que podias, e isto é tudo por causa da inveja que os outros têm de ti.
E aquilo que para mim se vai tornando evidente é que este exercício de pensar, se for separado da experiência de viver, é irmão gémeo do exercício de não pensar que, de resto, nem sequer existe – porque, quer queiramos quer não, toda a gente pensa.No mundinho superficial de Teresa Quadros podia não estar presente o génio de um M. Tavares mas dele nunca se ausentou o coração selvagem. O meio, que nos quer obrigar a ser mais espertos do que a vida, contornando-a pela via da tese, não nos faz ascender ao céu. 
Teresa, como toda a gente sabe, era pseudónimo de Clarice Lispector.

Descoordenação

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Vão cobrir-se de neve as escadas e o dia durar tão pouco que ao sair vais ter sido enganado e estar à espera que ainda haja luz. Em parte isto é um truque que tem a ver com as luzes dentro do edifício. Enquanto o dia dura, é demasiado claro. Gelado, tão húmido que há sempre nevoeiro mesmo sobre o que são só campos de erva e é possível sentir a rigidez do ar na cara. Os dias são muito curtos e a cidade é muito mal iluminada. Uma iluminação dos anos quarenta, do tempo da guerra, a servir o efeito de poupar energia e diminuir a visibilidade para evitar que a cidade fosse bombardeada, uma iluminação que nunca foi substituída.
De noite, alguns grupos remam ao longo do canal e às extremidades dos remos chamam lâminas. É agora que o rio sobe até às casas, que as correntes são mais fortes e barcos com nomes de mulheres são abandonados para apodrecer nas reentrâncias mais pequenas junto a pontes minúsculas, onde há menos água ou a água são poças cheias de líquenes, tão espessa que é  quase lama.
Todos os dias peço que seja limpa a língua que uso, que seja clara. Alguma claridade para que não me desentendam completamente. Um pouco de paciência. Pode ser que chegue. Que assim escape. Tenho observado que toda e qualquer conversa sustentável entretida por pessoas responsáveis é baseada num mito que implica falsa reciprocidade: o do ouvinte interessado e disponível. É por isso que estatísticas comprovam que 74,3% das conversas mantidas por pessoas na faixa etária dos 26 aos 68 anos de idade em contextos à partida impessoais comportam por princípio algum grau de hipocrisia.

Se num ano inteiro não tiveste nenhuma conversa em que te sentiste completamente morto por uma palavra, esmagado como um insecto sob o peso inteiro dela – observações demonstram que a articulação de dois ou três sons por vezes basta para surtir este efeito –, ou se não te encontraste com uma palavra perfeitamente adequada, tão súbita que logo a seguir tivesses a vontade de escrever por baixo “sangue”, se nada disto se verificou sabes que continuar vivo é o que tens feito e assim fecho a boca, deixo cair a caneta e continuo a remar.
Outro ângulo. O som límpido de uma coisa como quando corre. Mesmo que não dure, forte que chegue para correr. Isto não é uma finalidade, não é sobre hábito, uso, consumo. A força que este movimento gera não é sobre chegar ao fim, não é sobre acabar. É repetida até à exaustão, eléctrica na sua natureza mais nuclear. O seu trabalho e tráfico são a beleza deitada fora. Não é um ofício porque é sobre sincronia e ritmo, em negativo, descoordenação e arritmia, isto é, como uma arte pode ser começada. Não sabes se isto bate certo. A única coisa que te explicaram logo no início é que para viver todos os dias uma só desculpa chega. 

*

Trago comigo a máquina. Não foi longe daqui e não foi há muitos meses. Éramos quatro sentados na mesa e abri a lente. A conversa foi cortada pelo som mecânico, pequeno animal a deslocar-se rápido. Antes de carregar no botão viraste-me as costas para que nada se soubesse do teu rosto. Eu ia disparar e sei que acreditavas que uma só imagem chegava para te fazer cair morto.
Mas agora já não é completamente mentira que tenha muitas fotografias tuas.
Se é verdade que há aquela idade em que uma rapariga consegue perceber todo o poder que tem contra o rapazola que se encosta ao muro atemorizado, também ainda nenhum deles tinha passado para o lado de entender completamente o que isso significa e tudo o que existiu nesse antes é do domínio da competição. Ninguém pode dizer o que aconteceu depois. Talvez nenhum deles tivesse como saber antes.  
É por causa disto que nenhuma desculpa chega. Nenhuma desculpa vai chegar nunca. Nenhuma. Nunca. Esta é a única coisa a saber ao certo. E o pior de tudo é pensares que uma desculpa pode e deve ser encontrada.
Vês como o tronco se dobra e vês o contorno desses músculos,
das costelas. A mão curva-se em concha para a água e pensas que este corpo é uma coisa tão frágil que pode ser partida. Ou sozinho partir-se ao meio. Não existirá depois deste segundo. Depois deste segundo este corpo não vai existir nunca mais. A preto e branco no espelho a cara lavada. De tudo o que tenhas esta é a única coisa verdadeiramente tua. A única que conquistaste. A única coisa acertada.
Reclamar isto. Qualquer coisa de jeito que possas aprender (enquanto tinha tempo tentou aprender esta música, mas ninguém percebeu para quê) tem sempre de vir um pouco tarde, sem que possas saber se vai dar certo. Este riozito a dar para o inverno e de noite. Pés em desacerto na lama. Nada. Tu a conteres-te porque não queres que acabe nunca.