Depois do livro, George Steiner

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Num artigo de 1972, George Steiner formula, retomando ideias pretéritas e abrindo para teses futuras, a finitude do livro, esse dispositivo essencial da cultura ocidental moderna. O título, “After the Book?”, é menos niilista do que poderíamos supor, e não justifica totalmente o texto que encabeça. Na verdade, para Steiner, depois do livro vem a barbárie, nenhuma outra tecnologia cultural conseguirá substituir a função civilizacional do livro, sem livros regressaremos às cavernas, mesmo possuindo a mais sofisticada tecnologia assistencial e hedonista de que há memória.

Na tradução de Miguel Serras Pereira, de quem cito, para a editora Gradiva, 2013, George Steiner. Sobre a Dificuldade e Outros Ensaios (On Difficulty and Other Essays, a 4$ na Amazon.com), encontramos esse e outros textos que vivem em torno da linguagem, tema predileto de Steiner, visto que, como escreve na página 262, “Habitamos um mundo de linguagem, e se este é origem de dilemas desconcertantes, mas marginais, é também a raiz da nossa existência consciente e do domínio que exercemos sobre a natureza.” Somos animais de linguagem e a versão mais sofisticada está inscrita nos livros, o esplendor da linguagem usou mais a escrita do que a fala. Ora, o problema é que “A amnésia organizada do ensino americano – e boa parte da Europa segue o seu exemplo – fez com que o alfabeto das alusões escriturárias, mitológicas e históricas da nossa literatura se tornasse hieroglífico.” (p. 263) Problema insolúvel para Steiner. E inclino-me para essa visão, talvez cassándrica, do mundo: lemos menos (apesar de se venderem mais livros e de se consumirem mais medicamentos, cujas bulas são textos extensos e quase poéticos) e lemos pior.

Steiner compreende que o livro só “durante um trecho relativamente breve da história, foi um fenómeno importante.” (p. 255) Talvez apenas a partir de Santo Agostinho se tenha começado a ler em silêncio, subjectivamente. E depois é preciso esperar pelo século XVI para que o livro comece a ser um elemento cultural determinante. Mas de seguida ele ganha um ascendente formidável em relação a todas as manifestações da cultura oral, tanto que se torna “comprovadamente o talismã contra a morte.” (p. 261) O ser humano passa, assim, a ter uma pele e uma alma linguísticas, e todas as renovações que ocorreram nos últimos séculos só resultaram porque a linguagem permitiu a sua eclosão, por exemplo (exemplo meu), sem O Manifesto do Partido Comunista não teria havido a revolução russa de 1917 (um materialista dialéctico discordará), ou sem a embriaguez poética (apesar de tudo controlada) de Charles Bukowski vender-se-ia menos cerveja no Bairro Alto de Lisboa, ou sem a poesia do corpo libidinoso de Mário Cesariny haveria mais adultos enfiados nos armários da culpa e da vergonha. Mas ainda, como disse acima, que se publiquem cada vez mais livros (haverá, claro, um retrocesso), faltam leitores sérios, como refere Steiner: “os requisitos principais da leitura concentrada no sentido de outrora [o “outrora” dele é por vez mítico] – o isolamento, o silêncio, o reconhecimento do contexto – tornam-se cada vez mais raros no próprio meio dos estudantes de nível universitário em que mais importante seria encontrá-los.” (p. 268)

É por isso que, para Steiner, “Depois do Livro” virá o “dilúvio”, uma profunda negatividade capaz, entre outras coisas, de eleger presidentes iletrados e dar autorização para ensinar a seres que nunca ultrapassaram o patamar da memorização incipiente e irrelevante. Se já chegamos lá? Vamos indo, tanto mais que “O que está assim em formação não é simplesmente uma «contra-cultura», mas uma «pós-cultura».” E, como sabemos, os “pós” são muito mais difíceis de identificar do que os “contra”.

Entretanto, boas leituras!

Charles Bukowski, "o atacador"

Tradução de João Coles

 

o atacador

uma mulher, um
pneu que se esvazia, uma
doença, um
desejo; medos defronte de ti,
medos tão quietos
que os podes estudar
como peças de xadrez
sobre o tabuleiro...
não são as grandes coisas que
mandam um homem para o
manicómio. para a morte já está preparado, ou para
o assassínio, o incesto, o furto, o incêndio, a inundação...
não, é a série ininterrupta de pequenas tragédias
que mandam um homem para o
manicómio...
não é a morte do seu amor
mas um atacador que rebenta
já sem tempo de sobra...
o pavor da vida
é aquele enxame de trivialidades
que pode matar mais depressa que o cancro
e que está sempre à espreita –
matrículas ou impostos
ou a carta de condução caducada,
ou contratações ou despedimentos,
fazê-lo a alguém ou ser vítima disso, ou
prisão de ventre
multas por excesso de velocidade
raquitismo ou grilos ou ratos ou térmitas ou
baratas ou moscas ou um
gancho partido de uma porta de rede
mosquiteira, ou ter o depósito seco
ou a extravasar,
o lavatório está entupido, o senhorio está bêbedo,
o presidente pouco se marimbando e o governador
enlouqueceu.
um interruptor avariado, um colchão que nem um
porco-espinho;
$105 por uma afinação, um carburador e uma bomba de alimentação na
Sears Roebuck;
e a conta do telefone em alta e o mercado
em baixo
e o autoclismo
avariou,
e as luzes queimaram –
a luz da entrada, a luz da frente, a luz das traseiras
a luz interior; está
mais escuro que no inferno
e ao dobro
do preço.
depois há o chatos e unhas encravadas
e pessoas que insistem ser
tuas amigas;
há sempre isso e pior;
uma torneira a gotejar, Cristo e o Natal;
salame azul, 9 dias de chuva,
abacates a 50 cêntimos
e salsicha de fígado
roxa.

ou ganhar a vida
como empregada de mesa na Norm em turnos rotativos,
ou a despejar
arrastadeiras,
ou a lavar automóveis ou a lavar pratos
ou a roubar as malas das velhotas
e deixá-las aos berros nos passeios
com os braços partidos aos seus 80
anos.

de repente
2 luzes vermelhas no retrovisor
e sangue nas
cuecas;
dor de dentes, e $979 por uma prótese
$300 por um dente
de ouro,
e a China e a Rússia e a América, e
cabelos compridos e cabelos curtos e cabelo
nenhum, e barbas e caras
nenhumas, e muito ziguezague, mas nenhum
penico, salvo talvez um para onde mijar e
outro à volta do
ventre.
em cada atacador rebentado
entre cem atacadores rebentados,
um homem, uma mulher, uma
coisa entra num
manicómio.

portanto cautela
quando se
agacharem. 

In Mockingbird Wish Me Luck


the shoelace

a woman, a
tire that’s flat, a
disease, a
desire; fears in front of you,
fears that hold so still
you can study them
like pieces on a
chessboard . . .
it’s not the large things that
send a man to the
madhouse. death he’s ready for, or
murder, incest, robbery, fire, flood . . .
no, it’s the continuing series of small tragedies
that send a man to the
madhouse . . .
not the death of his love
but a shoelace that snaps
with no time left . . .
the dread of life
is that swarm of trivialities
that can kill quicker than cancer
and which are always there –
license plates or taxes
or expired driver’s license,
or hiring or firing,
doing it or having it done to you, or
constipation
speeding tickets
rickets or crickets or mice or termites or
roaches or flies or a
broken hook on a
screen, or out of gas
or too much gas,
the sink’s stopped-up, the landlord’s drunk,
the president doesn’t care and the governor’s
crazy.
light switch broken, mattress like a
porcupine;
$105 for a tune-up, carburetor and fuel pump at
Sears Roebuck;
and the phone bill’s up and the market’s
down
and the toilet chain is
broken,
and the light has burned out –
the hall light, the front light, the back light
the inner light; it’s
darker than hell
and twice as
expensive.
then there’s always crabs and ingrown toenails
and people who insist they’re
your friends;
there’s always that and worse;
leaky faucet, Christ and Christmas;
blue salami, 9 day rains,
50 cent avocados
and purple
liverwurst.

or making it
as a waitress at Norm’s on the split shift,
or as an emptier of
bedpans,
or as a carwash or a busboy
or a stealer of old lady’s purses
leaving them screaming on the sidewalks
with broken arms at the age of
80.

suddenly
2 red lights in your rear view mirror
and blood in your
underwear;
toothache, and $979 for a bridge
$300 for a gold
tooth,
and China and Russia and America, and
long hair and short hair and no
hair, and beards and no
faces, and plenty of zigzag, but no
pot, except maybe one to piss in and
the other one around your
gut.
with each broken shoelace
out of one hundred broken shoelaces,
one man, one woman, one
thing enters a
madhouse.

so be careful
when you
bend over.


In Mockingbird Wish Me Luck

Reinventar a autoridade

Alain Finkielkraut e Frédéric Gros, 2017

Alain Finkielkraut e Frédéric Gros, 2017

I

[O problema da autoridade parece oscilar entre a obsolescência e uma necessidade urgente, inadiável da sua recuperação. Mas na verdade, o enfraquecimento da velha autoridade acrítica abre a possibilidade de se encontrarem novas formas autoridade justificadas e reconhecidas, isto é, formas de exercer o poder de maneira legítima e fecunda (é isso que diz Alain Renaut, no La fin de l’autorité, 2004, quando escreve que o desaparecimento da autoridade traz menos uma catástrofe do que “interrogações inéditas sobre as práticas do poder”, tendo isto que ver com o próprio “futuro da democracia, simultaneamente como regime político e como cultura”). Parte da entrevista que traduzo, em modo paráfrase, abaixo prende-se com a relação entre a edução e a autoridade (um verdadeiro problema nacional em França), há muito formulada, em dicotomia, por John Locke (os adultos têm o direito, e o dever, de completar o que falta às crianças, e isso valida a autoridade) e Jean-Jacques Rousseau (cuja palavra de ordem foi: “deixai a criança ser criança”). Portanto, a questão filosófica que hoje se coloca, porque a linha rousseauniana venceu a lockiana, é a de como numa sociedade de iguais se pode limitar suficientemente, e eficientemente, o acesso das crianças e dos adolescentes a essa mesma igualdade? Talvez por isso uma nova racionalidade crítica deva questionar as fragilidades sociopolíticas da falta de autoridade, ao mesmo tempo que denuncia a adesão acrítica, a submissão consentida (muitas vezes amada). Em Resumo, precisamos de uma crítica (prolongando Immanuel Kant) que desenvolva a autonomia individual sem cair em novos individualismos. Por enquanto mantém-se a incerteza em relação às boas estratégias para a coligação social (uma junção que não esmague o diverso), é que hoje continua a velha dissimetria hierárquica, justificada pelos mais estapafúrdios lugares comuns (do tipo: “a velhice é um posto”), acarinhados como se se tratasse de um património reflexivo.]

II

Alain Finkielkraut, o conservador lúcido, Frédéric Gros, o libertário não anarquista, foram entrevistados pela Philosophie magazine em Agosto de 2017, questão de se regressar ao problema da autoridade no início do ano lectivo francês.

Como definir a autoridade? Começa por perguntar, Finkielkraut. Não basta ser competente, é preciso também, diz o pensador, direiteza (droiture), clarividência e firmeza, “uma certa nobreza”. F. Gros refere, por sua vez, que a ideia de autoridade tem pelo menos duas dimensões: ausência de violência física e poder indiscutível, a autoridade impõem-se como não-negociável. Ora, a segunda característica colide com o ethos democrático igualitário, onde tudo é discutível. Por isso, para funcionar, a autoridade necessita de ser reconhecida como legítima por quem obedece. Não se trata, pois, e isto é muito importante para F. Gros, de “fonte de legitimidade”, mas de “reconhecimento” e de “funcionamento”. [ele prolonga o funcionalismo do pós-modernismo francês, não fosse ele um distinto foucauldiano]. Refere que habitualmente a desigualdade esmaga, excepto no caso da admiração, quando se admira alguém (o filósofo, um músico, um político...) isso impele à superação. Face à autoridade legítima nunca nos sentimos submetidos, tentamos antes “estar à altura”. Mas, acrescenta o pensador, poucos são realmente dignos de admiração. [mal seria termos de admirar meio mundo].

Finkielkraut subscreve a ideia, mas acentua o erro de se identificar o mestre com o opressor. A seu favor, evoca a teoria da autoridade de Hannah Arendt: obrigação das gerações mais velhas inserirem os neófitos no mundo, exercendo responsavelmente a autoridade. Contrariando a visão de Pierre Bourdieu, e outros soixante-huitardes, para quem qualquer acção pedagógica era objectivamente uma violência simbólica imposta por um poder e uma cultura arbitrárias. [Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, La reproduction. Éléments pour une théorie du système d’enseignement, 1970]. Infelizmente, para Finkielkraut, a instituição escolar preferiu Bourdieu a Arendt. Assim, à força de expulsar a “violência simbólica” da escola, esta tornou-se um “campo de ruínas”. Mais, não haverá transmissão nem, portanto, civilização possível, se toda a hierarquia for considerada arbitrária e denunciada como repressiva.

Frédéric Gros, é menos pessimista, embora destaque que a educação vive no paradoxo, presente em grandes pedagogos como Montaigne, Locke ou Kant, de carecer da obediência para desenvolver o espírito crítico. A emancipação da criança, do adolescente só aparece depois de ele ser disciplinado (para aprender a ler, ter conhecimento do mundo, pensar metodicamente...). É por isso que, defende Gros, a disciplina e a liberdade não são incompatíveis, é necessário passar por uma camada de disciplina para depois a superar. Finkielkraut concorda, mas destaca o ataque que sofreu, e continua a sofrer, a assimetria de papéis na escola, dando-se aos alunos o mesmo poder do que aos professores. Muitas vezes isso faz com que a opinião dos alunos valha tanto como a dos professores, a ignorância eleva-se ao patamar da sabedoria, ou pelo menos vive num registo de impunidade.  

Gros recupera então o velho lamento que desde Platão (República) considera a autoridade morta. Haveria uma espécie de “essência nostálgica da autoridade”, concluindo-se que a autoridade é uma forma de poder que resiste, paradoxalmente, porque se lamenta de já não ser aquilo que foi. Finkielkraut discorda, ele próprio ainda não conseguiu ler Ulysses, mas não atira as culpas para o livro ou a sociedade, foi ele que não teve a confiança suficiente para o fazer. Pelo contrário, hoje o modo de reagir a uma impossibilidade semelhante a esta é atacar a obra nas redes sociais, estamos na era da irrisão perpétua. Mas será isso, pergunta-se Finkielkraut, realmente desobedecer à autoridade? F. Gros, aproximando-se de Finkielkraut [estranha-se que dois pensadores aparentemente tão distantes concordem tantas vezes durante esta entrevista], defende que uma desobediência a priori é tão contra-produtiva e perigosa como fazer da obediência uma virtude incondicional. Em boa verdade (epistemológica e ética), deve saber-se sempre porque se obedece ou desobedece.

O mais importante é, pois, definir os estilos de obediência (conformismo, submissão, subordinação, consentimento...) e de estudar os seus limites. Para Gros, o escândalo surge quando nas relações políticas se instaura a sobre-obediência. O que devia acontecer sempre, seguindo o que diz Aristóteles no livro III da Política, era o cidadão, mesmo quando obedece, fazê-lo de livre vontade, ordenando a si próprio a obediência. Finkielkraut retoma o lema Iluminista de aprender a sentir, pensar e agir autonomamente, este lema deve manter-se. Mas para isso é preciso formar e educar. A violência nas periferias parisienses, as incivilidades mais do que comuns na sociedade francesa, tantas vezes contra os professores, mostram que a humanidade começa pela inibição, não pela autonomia. [Relembre-se que Aristóteles escrevia para a elite virtuosa ateniense].

Finkielkraut evoca uma sondagem de 2016 onde os 83% dos inquiridos pensam que a “autoridade é um valor demasiadas vezes criticado”. Gros responde que isso não conduziu à vitória de Marine le Pen [extrema direita], prova de que há uma real diferença entre autoridade e autoritarismo. Aliás, para este autor as políticas autoritárias destroem a autoridade, visto assentarem apenas no medo, esquecendo-se do reconhecimento. E nestas políticas está a democracia, ou algumas formas de democracia perfeitamente compatíveis com o autoritarismo. Veja-se o caso de Vladimir Putin ou Recep Erdogan, sistematicamente reeleitos. É por isso que Gros defende uma “democracia crítica” ou uma “dissidência cívica”. É que para desobedecer autenticamente, para lá da simples economia da indignação, é preciso “compreender as causas éticas que me fazem obedecer, obedecer agora e sempre.”

Norman Lewis em Nápoles

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para o João Coles

Em Novembro de 2017, a BBC emitiu um documentário sobre o tempo que o escritor de viagens inglês Norman Lewis passou em Nápoles em 1944, o último ano da guerra, ao serviço do exército britânico. Baseado no livro de Lewis, Naples ’44, o documentário da BBC é narrado por Benedict Cumberbatch e uma das suas primeiras sequências, que há-de ser uma das primeiras coisas narradas no livro, é a descrição da chegada de Lewis aos templos em Paestum, à espera de fogo das tropas inimigas, de como ele e um bando de jovens soldados se abrigaram por entre as imensas colunas dessas velhas ruínas, que ali estavam há séculos e de como então se torna difícil de escapar a uma impressão de paz, de civilização.

O documentário, que já não está disponível no site da BBC, mas por aí há-de andar em DVD ou streaming, está cheio de imagens de filmes antigos e de clips de arquivo. Está também cheio das histórias dos encontros que Lewis teve com as pessoas que viviam na cidade, dos soldados americanos aliados à comovente aparição de duas orfãs cegas a mendigar num restaurante.

Em 1944, Nápoles era não só uma cidade ameaçada por bombardeamentos inimigos – a dada altura todo um quarteirão da cidade tem de ser evacuado porque se pensa que os alemães o haviam armadilhado –, mas também pelos terramotos em parte causados pela presença do Vesúvio. E, no entanto, apesar de toda a destruição, as pessoas continuavam a viver, continuavam a tentar. Como é horrível a guerra, é um lugar-comum, mas nada é tão verdadeiro: como o exército inimigo destruiu a cidade, assassinou mulheres e crianças, como o exército de libertação permitiu que a corrupção florescesse e forçou uma parte considerável das mulheres da cidade (então 1/3 da população) à prostituição. O quão resilientes e cheios de recursos eram os napolitanos. A meio de tudo isto, dá-se uma erupção do Vesúvio que muda a face da montanha para sempre.

Há duas coisas que importa dizer acerca deste documentário: a primeira é que a capacidade de Norman Lewis para a empatia é impressionante. Lewis era alguém tão discreto que costumava dizer que podia entrar e sair de uma sala sem ninguém reparar que ele lá tinha estado. A outra coisa de que este documentário nos lembra é que o mundo sem gentileza é um lugar avariado, que não funciona, que é exactamente a capacidade das pessoas para serem gentis uma das coisas que fazem estar vivo valer a pena. 

Nápoles é uma cidade com mais de três mil anos, caótica, desorganizada, suja, mas, argumenta quem dela gosta, nada difícil de amar. Atravessando a Piazza Dante em direcção ao interior do quarteirão velho, bem para dentro do coração da confusão, recusando avançar em linha recta em direcção à ampla e bem mais organizada Piazza dei Plebiscito, assalta-nos a impressão de um mundo misterioso, violento, ao mesmo tempo velho, novo, cosmopolita e empobrecido, mas sempre gregário, de gente reservada e aberta, ao mesmo tempo generosa e grave. Em Nápoles, somos capazes de dar por nós a amar o mundo mutilado. É nesse sentido que gostar de Nápoles, que amar a história de todas as cidades que amamos, nos ajuda a viver.

Sobre um poema de "Os Poemas Fingidos" de Pedro Braga Falcão

Poemas-Fingidos.png

Dentro em pouco, será lançado este livro de Pedro Braga Falcão (agendado para a Barraca, Lisboa, dia 29, com leituras a três na bela livraria Flâneur, Porto, dia 31 de Março de 2018). Acho que vai haver revelações, tanto mais que será a nossa editora, e poeta, Tatiana Faia a escrutinar o trabalho do Pedro. Chamo-lhe “trabalho” para não repetir palavras (aprendi isso com a minha professora primária, que sufocou a empatia à nascença). Em boa verdade, poderá uma obra ser considerada trabalho? Que diabo de palavra é esta que consegue misturar economia, teologia e fisiologia, acabando, sem o saber, no reino mais conservador da metafísica? Enfim, avancemos: Pedro Braga Falcão, parte dele, quer estar à margem da actualidade, por isso (ou por outra razão, mas aqui calha bem estabelecer essa relação) traduziu as Epístolas e as Odes de Horácio (Cotovia) e um dos seus livros de poesia chama-se Do Princípio. Sei parte disto também porque ele o confessou numa espécie de autobiografia para a Enfermaria, embora a arte do oximoro, que por vezes encanta ouvintes (usa ainda a viola, com a qual ressuscita música antiga, a quem, como é sabido, ninguém resiste), deva acautelar juízos perentórios.

Conheço o Pedro há pouco, ou melhor, encontrei-me com ele duas vezes, numa já tínhamos bebido uns copos (e sem autocensura entra-se no reino do disparate, excepto os bukowskianos), na outra, há poucos dias, estávamos envolvidos por uma multidão de estudantes a satisfazer uma das necessidades mais básicas da Pirâmide de Maslow (comer), contexto pouco propício à visão oblíqua que extrai segredos importantes do parceiro discursivo. Mas enfim, percebi, entre outras coisas, que acha a filosofia moribunda (eu fui atrás, quando devia ter cruzado ferros), o homem mais interessado na esperança de vida do corpo (bons auspícios para antropotécnica) do que em cuidar do espírito e os ritos teológico sem a raridade que lhe confeririam o poder mágico de trazer a transcendência até nós. Portanto, duas conversas e aproveitar o sentido do que vai escrevendo, também para a Enfermaria, ou está nas críticas às suas obras contaminará pouco a minha hermenêutica (uma hermenêutica fenomenológica, perdoe-se o centauro pretensioso). Não do livro inteiro, mas de um poema, um único poema que, sem resumir o sentido, ou sentidos, da totalidade, pode indicar o tom para apanhar o autor pelas costas (o velho sonho de capturar o universal no singular). Modo de dizer, sabe-se (embora poucos acreditem) que os autores são ultrapassados pelas obras, e mesmo estas vão sendo reescritas pelos leitores. Contudo, autorizo (e creio que até facilito) o autor a rir-se desta leitura, devo-lhe isso.

O poema é o 11.º do terceiro capítulo do Livro II:

Como essas crianças aí, estupidamente felizes,
porque não ter a estupidez de uma felicidade,
e comprometer-me ao estilo de mexer os braços?
Ser de uma estupidez intolerável.
E não entender nem um pouco mais do que entendo.

Ser como os que desprezamos, nós,
os que vivem na cabeça e deixam o corpo órfão,
à espera do dia em que lhe dirigimos a palavra,
na doença, na podridão dos nervos,
nos intestinos virados do avesso.
E aquela criança estupidamente infeliz
porque lhe morreu a mãe e não tem ninguém,
que não brinca e baixa os olhos e não nos vê?
Será que nós, os sábios que idolatram a ignorância,
fomos ou queremos ser estúpidos como ela?
Ou a ambivalência das grandes frases e frustrações
nos deixa perplexos perante a nossa estupidez?
Ou de tal modo ociosamente retóricas
as perguntas se desfazem num humor sujo
a que todos nós chamamos o néctar dos deuses.
E ainda assim confessamos que a ciência,
essa deusa macabra, não brinca
como brincam essas estúpidas crianças.

Pedro Braga Falcão evoca aqui a antiquíssima questão sobre a origem, a proveniência da felicidade. Problema que exige um certo grau de sofisticação intelectual, daí que os pobres de espírito (haverá tal coisa?) vivam felizes ou infelizes, enquanto os ricos de espírito (haverá tal coisa?) reflictam sobre como viver feliz ou infeliz (que às vezes declinam nos termos tristeza e melancolia, combinando-os com um cigarro e um copo de vinho tinto reserva). E isto são dois mundos irredutíveis, não há qualquer transvase de sentido entre eles. No primeiro andamento do poema critica o destino por lhe ter recusado a linha de vida das crianças “estupidamente felizes”. Lamento frequentemente ouvido nos eruditos quando se cansam da bibliomania que os aprisiona; mas seria estranho que repentinamente deixassem o corpo visitar lugares afastados das estantes ou mesas de trabalho (regressou a palavra equívoca), reeducar o corpo demora muito tempo, e vá lá saber-se se eles querem verdadeiramente isso. Sobretudo, como diz Pedro Braga Falcão, porque os que “vivem na cabeça” “deixam o corpo órfão”. Mas o idílio da estupidez, entramos no segundo andamento, pode não ser o do intangível Caeiro, antes o de uma criança sem mãe, uma estupidez da miséria e do sofrimento. E claro, a tensão entre a realidade vivida e a realidade fingida só podia criar a ambivalência que reverte o jogo dialéctico inicial, mostrando que os campeões da semântica (com a sua fé absoluta nas palavras) são, afinal, grandes estúpidos (às vezes, poucas, magníficos). E nem a ciência resiste, porque o seu poder fantástico de descrever os diagramas das leis naturais não a dispensa de uma estupidez essencial em relação ao que é propriamente humano, escapa-lhe que nós vivemos com um pé no jogo e outro no cemitério, brincamos e moremos, não de uma só vez, mas em modo gerúndio: vamos brincando e morrendo, e isso escapa à “deusa macabra”.

Portanto: Pedro Braga Falcão, cuja poesia mistura muitas vezes o Antigo Testamento com a paideia de gregos e romanos antigos – epicuristas e estóicos, menos cínicos –, heróis que se deixavam alegremente vencer pelos caprichos do Cosmos (talvez o chaosmos de Joyce), quere-se, antes de mais, lúcido. A sua poesia desnuda os nervos que decidem o movimento das coisas, das ideias e das emoções, e os nervos não mentem, nem lhes interessa a beleza poética, revelam as coisas como são. Neste caso, a estupidez é estúpida e quem a glorifica vive rodeado de dicionários e esqueletos andantes, ou então, como dizia uma personagem célebre, “sofre de fartura”.