Salman Rushdie e a questão da verdade

Neo-realismo italiano, Tromboli de Roberto Rossellini, com Ingrid Bergaman

Neo-realismo italiano, Tromboli de Roberto Rossellini, com Ingrid Bergaman

“Um indivíduo não pode auxiliar ou salvar uma época,
tudo o que pode é mostrar que ela está perdida.”
Kierkegaard, citado por George Steiner

Declaração de convicções: a minha principal palavra maldita é a verdade, relembro que ao longo da história foi usada como razão para apagar, biológica, artística ou cientificamente milhões de elementos que num determinado momento e contexto fugiam ao verdadeiro instituído. A verdade platónica tinha um acesso limitado e o uso seria sábio, o problema foi a sua massificação simplória, excitando-se a massas com ideias de verdade destrutivas (do regime nazi ao literal neo-realismo maoista, passando pelos múltiplos e incontroláveis ódios religiosos ou nacionalistas).

No artigo para The New Yorker de 31 de Maio, Salman Rushdie regressa ao problema da verdade. A palavra é simples e parece apropriada para abrir caminho através da confusão e da complexidade. Acabando com “é verdade” ou “é mentira”, as discussões seriam de uma facilidade sem mais, todos saberiam o próximo passo a dar, sem equívocos, hesitações ou impasses. Num certo sentido, estaríamos próximos do hegelianismo que vê o curso da história orientar-se por um mapa lógico, terminando numa coincidência entre verdade e acção, para lá da história (tese retomada, embora noutros termos, por Francis Fukuyama no seu The End of History and the Last Man). Ilusão encantatória que recupera uma parte da declaração agostiniana de que “amamos tanto a verdade que se amamos outra coisa além dela queremos que o que amamos se torne verdade.” (Confissões, X, 25, 34).

Ora, o que nos diz Rushdie? A era actual das “fake news” (ver o ensaio “Pós-verdade e pós-modernidade” publicado na Enfermaria 6), com a velocidade alucinante a que circulam os discursos (discorrer por palavras ou imagens) e o nivelamento da credibilidade dos produtores e divulgadores nas redes sociais, erodiu velhos critérios de verificação e aceitação. Agora, tudo pode ser considerado verdadeiro, e o verdadeiro, por sua vez e com a mesma facilidade, pode ser considerado falso. Isto é bem diferente do entendimento da verdade como algo que pode e deve ser contestada (“The truth is that truth has always been a contested idea.”, Rushdie), porque os factos são históricos, acontecem numa constelação de sentido que varia com o tempo e a perspectiva cultural que enquadra a interpretação. É por isso, escreve Rushdie, que “The past is constantly revised according to the attitudes of the present”.

Ainda assim, a era de ouro do romance realista (séc. XIX, coincidindo com a emergência das várias formas de positivismo científico) e a herança que deixou nas linhas que dele se inspiraram (no fundo, todos os neo-realismos) marcou uma vontade e desenhou um estilo que queria e sabia descrever a realidade, ou melhor, as realidades. Neste caso, havia consenso em torno de um verdadeiro alargado, a ficção estava, estranhamente, ao servido do real. Mas o século XX, depois de tentativas de continuidade, como o Buddenbrooks de Thomas Mann (aliás, desconstruído logo a seguir pela Montanha Mágica do mesmo autor), desenvolveu uma complexidade tal que mostrou a fragilidade do monoparadigmatismo oitocentista. Em consequência, Rushdie acredita que actualmente se explica melhor o mundo através da diversidade de narrativas, muitas vezes incompatíveis. Se explica e se combatem mais eficazmente os novos autoritarismos (administração Modi na Índia, trumpismo...) ou ilusões nacionalistas como o Brexit. Cada narrativa será composta por argumentos que se aliam ou combatem outros argumentos, deste jogo argumentativo tendencialmente agónico, acredita Rushdie, surgirão verdades capazes de compor ou alimentar sociedades. Sempre provisoriamente, o jogo é infinito, nas sociedades abertas (como sabemos, o termo é de Henri Bergson mas foi Karl Popper quem o tornou famoso em The Open Society and Its Enemies) um complexo argumentativo será substituído por outros, sem revoluções epistemológicas ou estéticas radicais (sobretudo, sem violência despropositada), nas sociedades mais multiculturais coexistirão até diferentes complexos. Será, então, esta diversidade argumentativa que, na dinâmica de um work in progress, desenhará sentidos para o mundo, não verdades perenes e dogmáticas, mas sentidos. Uns mais fortes do que outros, uns mais duradouros outros mais efémeros, mas todos provisórios. E desta forma se evitarão os objectivismos que suportam autoritarismos. Bem-vindos a era do relativismo são.

Uma espécie de editorial

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por Cassandra Jordão e Victor Gonçalves

Teóricos marxistas decretaram o fim da arte do romance em meados da segunda década do século passado e passaram o resto do seu tempo livre a tentar recolher os cacos. Antes de todos os romancistas que vieram depois e provaram a conclusão errada, antes disso,  há àquela corrida até ao eléctrico algures na Baixa de Lisboa, dividida entre Carlos Eduardo da Maia e João da Ega em Os Maias, na qual, em jeito de epílogo cinematográfico, se declara que ambos tinham falhado a vida. Incesto e ambições literárias frustradas à parte, as implicações desta declaração para a história da literatura em português, para a obra do próprio Eça, são aprendidas de cor por estudantes de ensino secundário em Portugal e podem ser sumariamente citadas. Nesse momento, Eça mede, numa cena que ele sabe que faria para sempre parte de um museu afectivo de cenas maiores da literatura portuguesa, o hiato da desadequação entre a imensa promessa da sua geração, os seus sonhos de autor e a realidade. Ega e Carlos Eduardo então como arquétipos não só da sua geração, mas da literatura da sua geração. Sem grandes melancolias, depois disso Eça prossegue para se dedicar ao mesmo tipo de prazer culpado que entretiveram os seus heróis em França: o romance histórico, novelas em que personagens principais se dividem esquizofrenicamente entre um amor barroco ao enciclopedismo e à tecnologia e ao bucolismo, e a criar uma das personagens mais interessantes e inquietantes da história da literatura em português, esse Fradique Mendes que de algum modo olha para a frente, para a inquietude e para a mente colorida que encontraríamos mais tarde nos heterónimos de Pessoa.

            Tudo isto para dizer que o Caderno 5 da Enfermaria 6 é uma antologia dos textos que mais agradaram ao quinteto editorial da Enfermaria publicados no site em 2017. Que o objectivo deste caderno talvez seja agarrar e perder, e não lamentar perder, essa coisa fugidia implícita na longa corrida de personagens arquetípicas do romance português do século XIX: mais do que deixar uma imagem da literatura a acontecer, ou um cânone lusófono em formação (nunca teríamos a isso pretensão), ou gabarmo-nos de publicar o melhor poeta do nosso bairro, simplesmente queríamos deixar aqui um quadro vivo das coisas que aconteceram na Enfermaria 6 durante um ano, aberto para um impulso de olhar para a frente. Esta é uma recolha de ensaios, poemas, contos, notas, breves apontamentos. A sua função pode bem ser vista como a nossa tentativa de mapear os gestos de alguns autores que, generosamente, connosco, tentaram a sua corrida e tentaram registar o significado de determinados momentos, no seu peso histórico, filosófico, político, poético. No seu peso jogando contra eles ou a favor deles. A favor da beleza do quotidiano, contra o lado reles da burocrática rotina cívica. Enquanto blog, a Enfermaria 6 é actualizada quase diariamente, com textos sobre coisas que ferem e sobre coisas que nos fazem pulsar, de autores maioritariamente oriundos de Portugal e do Brasil. Acreditamos que muitos destes textos merecem um registo menos efémero do que o tempo entre uma actualização e outra do nosso blog. Deixamos aqui então esta nossa proposta de anuário. E comprometemo-nos a tentar voltar para o próximo ano.

Quanto a mim, Victor Gonçalves, acredito que outras teorias além da marxista, ou marxiana (espreito os puristas em cada esquina), quiserem enterrar o romance, ou pelo menos um romance que se estivesse borrifando para a reparação da sociedade, porque não será isso que em primeiro lugar lhe compete, apesar de todas as vagas realistas e neo-realistas. Houve uma onda quase mortífera de utilitarismo que varreu todos os modos de ser supérfluos, justamente esses que fizeram do ser humano algo mais do que um caracol (sem especismos). Mas enfim, somos animais de linguagem e, por isso,  insistimos em ligar palavras a palavras, frases a frases, parágrafos a parágrafos... continuamos, apesar dos pesados decretos legalistas e das diatribes das brigadas da seriedade, a escrever ficção. Poesia ou Prosa (e as entremeadas estilísticas), mais romanceada ou mais conceptualizada, experimentando vias de sentido que julgamos inéditas ou revisitando outras já constituídas. É o amor à palavra que alimenta quase diariamente o nosso Blog, e muitos são os que vivem nesta paixão (não se perca a ambivalência do termo), alimentando-a. Sem cerca de uma centena de escritores que nos doam os seus textos nada disto seria possível, a eles o nosso profundo agradecimento. É verdade que não estão todos presentes literalmente nesta antologia, mas fazem parte da constelação que mantém vivo o projecto.

A filosofia deve explicar a totalidade

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Jürgen Habermas deu uma entrevista ao El Pais, disponível aqui. Falou da sua linhagem marxista (apesar de agora se inspirar em Emmanuel Macron), ele que é o último sobrevivente da Escola de Frankfurt, das rápidas mudanças provocadas pelos novos meios de comunicação de massa, da atomização da opinião pública, com as múltiplas parcelas que a constituem a lerem e verem apenas o que encaixa na sua visão do mundo, anulando-se a velha figura do intelectual público, capaz de formar opiniões através do esclarecimento (ainda há intelectuais, diz, mas já não existem leitores para eles), referiu-se também às migrações massivas, consequência do colonialismo e do capitalismo, e até se mostrou favorável a um patriotismo constitucional, na medida em que uma Constituição é lavrada pela história de um país. É neste sentido que se vê como um patriota alemão.

Por tudo isto, a entrevista tem o maior interesse para esses leitores que ainda mantêm viva a necessidade de apanhar ideias diferentes das suas, vindas de alguém que aponta cuidadosamente antes de disparar (a metáfora é dele). Mas o que me motiva mais a escrever esta nota é o que diz acerca da filosofia. Como sabemos (força de expressão), a filosofia está em declínio, à força de querer ser mais uma ciência, com protocolos de rigor que decidam da validade ou invalidade do que se diz, deixou de pensar nos problemas tradicionais que durante séculos fizeram dela o espaço privilegiado do pensamento crítico. E para Habermas eles são aqueles que Immanuel Kant formulou no final da Crítica da Razão Pura: o que posso saber? o que posso fazer? o que me é dado esperar? o que é o ser humano? Ora, estes problemas são globais, não é possível responder-lhes com uma filosofia redutoramente especializada em encontrar, através de uma lógica modal, na melhor das hipóteses, o que torna um discurso válido, logicamente válido (mimetiza-se Ludwig Wittgenstein sem o aparato complexo da sua genialidade). Para Habermas, a filosofia “devia tratar de explicar a totalidade, contribuir para a explicação racional da nossa maneira de nos entendermos a nós mesmos e ao mundo.”

Kanye West & Make Myself Great Again

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A grande polémica política americana da semana passada relacionou-se com o regresso de Kanye West ao Twitter e com o reafirmar do seu apoio ao presidente Donald Trump e à causa Make America Great Again. De início, o estrangeiro recém-chegado à América assusta-se com o aparente apocalipse que se abateu sobre o país: parece que se está a viver o pior dos tempos, com políticos impiedosos a quererem impor medidas que põem em causa os direitos dos cidadãos em áreas tão vitais como a saúde, ou com um presidente egoísta ansioso por deportar tudo o que não seja americano. Mas como um ataque de pânico, o susto inicial passa e, acostumado ao clima e às gentes, o estrangeiro já não se arrepia com a CNN ou com qualquer outra fábrica de telenovelas. Todo o acontecimento, inclusive uma ameaça de guerra nuclear, é convertido em espectáculo e circo. Seja como for, a América acordou em crise por Kanye West, fulcral para a manutenção do seu casamento com Kim Kardashian, figurar agora como um dos defensores de alguém tão contrário a valores tendentes para a tolerância e o cosmopolitismo. Quem estiver a par da obra e, especialmente, do percurso intelectual de West, intui que o que mais importa para si é provocar, e provocar com sentido de humor. Há uns dias, West escreveu no Twitter: “Harvey Levin of TMZ your [sic] hearing from your future president. Let’s be friends. Please never use the word erratic to describe a person who is economically and psychologically empowered.” A primeira coisa que se sente ao ler isto é vontade de rir, porque é esse um dos intuitos do rapper, fazer rir. Isso leva-nos a Trump e a algo (talvez) mais relevante. Trump é alguém que, tendo muita confiança em si mesmo e não vendo limites para a sua ambição, não leva nada a sério, nem a presidência americana, e por isso se tornou presidente. Kanye percebeu que não é preciso andar no sistema, ser um político com um discurso estruturado ou ser afiliado num partido: o fundamental numa sociedade como a americana, desprovida de ironia e de humor, é levarmo-nos mais a sério do que a presidência. Não é só a ausência de estofo intelectual que leva Trump a insultar ou a humilhar jornalistas e adversários políticos, a ameaçar a Coreia do Norte com “fogo e fúria”, é também uma vaidade desmedida que faz da sua pessoa alguém que tem conseguido tudo o que tem desejado. E este é Kanye: uma criatura tantas vezes idiota, sim, mas talentosa, que não encontra limites, que percebeu que este sistema americano, que este mundo, pode ser conquistado por via da vontade e do riso. Facilita pensar em Trump ou Kanye como gurus do optimismo e da comédia que, mais do que desejarem uma América renascida, desejam uma América vergada aos caprichos de um Eu cómico e imprevisível.

Neutral Milk Hotel, "Two headed boy"

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[Durante a última semana tenha andado a ouvir obsessivamente o álbum In the Aeroplane Over the Sea dos Neutral Milk Hotel (1998). Direi apenas que é um dos álbuns mais belos e comoventes que alguma vez ouvi e recomendo a todos que o oiçam. Em baixo fica o vídeo da minha música preferida e uma tentativa de tradução da letra.]


Rapaz de duas cabeças

[letra de  Jeff Mangum]

rapaz de duas cabeças
todo a flutuar em vidro
o sol ele passou
agora está mais escuro que breu
consigo ouvir-te a bater ao de leve no teu jarro
estou à escuta para ouvir onde estás
estou à escuta para ouvir onde estás

rapaz de duas cabeças
põe sapatos de domingo
e dança à volta do quarto ao som das teclas de acordeão
com a agulha que canta no teu coração
apanhando sinais que tocam no escuro
apanhando sinais que tocam no escuro
nós despiremos as nossas roupas
e elas estarão a colocar dedos através dos entalhes na tua espinha
e quando tudo se quebra
tudo o que conseguias manter dentro
agora os teus olhos não se movem
agora permanecem apenas na sua subida

rapaz de duas cabeças
com roldanas e pesos
a criar um rádio tocado apenas para dois
no salão com a lua sobre a cara dela
e ao som da música ele docemente revela
altifalantes de prata que cintilam todo o dia
feitos para a sua amante que flutua e sufoca com as mãos sobre a cara
e no escuro despiremos as nossas roupas
e elas estarão a colocar dedos através dos entalhes na tua espinha

rapaz de duas cabeças
não há motivo para aflição
o mundo de que precisas está embrulhado em mangas de ouro e prata
deixadas debaixo das árvores de natal na neve
e eu vou levar-te e deixar-te só
a ver espirais de branco a flutuar levemente
sobre as tuas pálpebras e tudo o que fizeste
esperará até ao ponto em que deixares ir


Two headed boy

Two headed boy
All floating in glass
The sun it has passed
Now it's blacker than black
I can hear as you tap on your jar
I am listening to hear where you are
I am listening to hear where you are

Two headed boy
Put on sunday shoes
And dance round the room to accordion keys
With the needle that sings in your heart
Catching signals that sound in the dark
Catching signals that sound in the dark
We will take off our clothes
And they'll be placing fingers through the notches in your spine
And when all is breaking
Everything that you could keep inside
Now your eyes ain't moving
Now they just lay there in their climb

Two headed boy
With pulleys and weights
Creating a radio played just for two
In the parlor with a moon across her face
And through the music he sweetly displays
Silver speakers that sparkle all day
Made for his lover who's floating and choking with her hands across her face
And in the dark we will take off our clothes
And they'll be placing fingers through the notches in your spine

Two headed boy
There is no reason to grieve
The world that you need is wrapped in gold silver sleeves
Left beneath christmas trees in the snow
And I will take you and leave you alone
Watching spirals of white softly flow
Over your eyelids and all you did
Will wait until the point when you let go