konstantinos

Konstantinos Kavafis c.jpg

para o Pedro Craveiro

 

 

isto não é uma apresentação formal
um encontro entre dois estranhos
num desses cafés que tu e eu
tanto amamos frequentar
onde pudéssemos calmamente
dar um aperto de mão
passar um pelo outro com uma daquelas
indiferenças que às vezes se sente
num espaço onde se pode ficar
sem que a ele cheguemos a pertencer  

mas entre estas duas fotografias de ti
podem ter passado qualquer coisa
como trinta anos
em ambas estás a usar um fato com colete
que me parece demasiado quente para o clima
e te fazem parecer um inglês
e entre uma e outra pouco na tua cara mudou
ganhaste um pouco de peso
a melancolia é mais ou menos a mesma
dá-te um ar disciplinado, contido
um pouco perdido e decadente
tudo isto te fica muito bem

essa ponta de tristeza
que em ti passou da timidez ao método
do método à resolução interna
misturada com um discreto ar de desafio
aquele que normalmente
é cultivado pelos snobs e pelos tímidos 

ocorre-me que o ar de desafio
não pode ter sido do agrado de todos
mas agradar aos outros
não era bem o que te trouxe
até aqui, embora uma distinção
importe: que mais do que isso
do breve agrado que com mais ou menos indiferença
se concede a alguns momentos medíocres
para que nos deixem em paz
não é mentira que o oposto disso
é o prazer com que continuaste
a regressar a certos lugares
a algumas pessoas
a alguns breves momentos de espera
onde cultivaste o desconforto
de permanecer só, completamente visível
e em violação de algumas leis
em espaços estranhos 

penso que não foi neste quarto
onde te fotografaste
tão atravancado de tanto lixo
as coisas que tu colecionaste
as que não podias deitar fora
que recordaste os dias
de 1908, de 1910, de 1911
e que te aplicaste a descrever
a profundidade desses nós dados no escuro
nesses teus poemas breves
maniacamente lidos e relidos
em que tentavas não perder de vista
os quartos e salas e os balcões de cafés
onde te sentaste, onde olhaste à tua volta
quando tentavas descrever
a que sabe a espera naquele ponto
onde não há nada entre o extremo
da alegria e do desespero
quando mais facilmente se entende
o quão facilmente alguém
mais do que ser salvo ou ser aniquilado
pode num estalar de dedos
encontrar-se, perder-se 
ainda que tu estivesses só a tentar
ficar perto
não largar o que prendeu a tua atenção
até que isso te deixasse cair
uma vez, e outra, e de novo 

e de tudo o que podemos apenas especular
eu do outro lado da sala vejo agora
esse momento que entreteve a tua espera
o cigarro preso entre dois dedos
o rosto levantado, os lábios fechados, o olhar fixo
em redor daquele que finalmente chega
entra calmamente sem que te agite
a ideia de ser este o último reencontro
ou a inutilidade de todos os momentos antes
a solidão horrível que virá depois
e durante dias e dias te deixará a certeza
de que uma parte de nós pode ser arrancada
e de que essa falta pode caminhar ao nosso lado durante anos 

tu dirias são estas as regras e os rituais dos escolhidos
isto que é apenas uma leve presença tão ténue
que sendo quase invisível exige apenas
uma atenção sem medo para que
quando te virares por um momento
esse que desapareceu e regressou no espaço mínimo
de olhos que se abrem e se fecham
te possa olhar agora a direito por um momento
que é o que dura o reconhecimento 

ele virou-se konstantinos, e juro-te
que como nos teus poemas às vezes
toda a sala desapareceu
que não se conseguia ouvir nada
para lá de um zumbido nos ouvidos
que a revelação é mínima
e é muito pouca a nossa escolha
perante o que é mais importante
apenas sim ou não sem meio termo 

imagino que para ti tenha sido ao fim da tarde
no outono talvez dessa primeira fotografia
quando no último calor
as romãs amadureceram lentamente
despontavam nos campos e entre as campas
a tua vida apanhada na curva do ocaso
no decrescer da luz, na mínima celebração
de salas escuras, em corpos estranhos e familiares
no barulho de chávenas e colheres em salas
cheias de fumo e vozes sempre ao começo
da noite quando a energia que é necessária
de nós é explosiva, dura muito pouco
e vem com uma força que é a única coisa
entre nós e a sordidez de não sentir nada
de vir viver nas quietas casas
tumulares do inverno ou de não encarar
o corpo daquele que se despiu
para nadar no mar de manhã a beleza para lá
da vergonha, da pobreza ou dessa cobardia
que tentamos praticar todos os dias
a de querer minimizar o risco
para viver sem dor e sem perda
e até isso de olhar sempre os outros de modo esquivo
de recusar o reconhecimento
que os outros merecem de nós 

fora da imagem não se vê bem
mas suspeito que estás a segurar o relógio
suspeito que um poeta gay de alexandria
pode ser o último deus
de uma antiguidade muito tardia
da absoluta urgência do tempo
suspeito que esse verso que escreveste
sobre um corpo que se esquece dele próprio
(continua a lembrar-te
continua a lembrar-te e continua
a voltar, por favor)
quase não é um verso
quase não contém poesia nenhuma  
senão o saber que quase
nada é tão vital quanto isso
que apenas quase não é um verso

Oxford,

5 e 8 de Novembro de 2018

A Construção da Morte (nota de leitura)

Edição de 23 exemplares

Edição de 23 exemplares

Neste novo trabalho, Eduardo Quina vai aperfeiçoando o seu talento de poeta, a cada novo livro projecta melhor a sua voz. Desta vez, retomando temas anteriores (que são tanto vibrações como territórios discursivos) – a meta-poesia, a morte, a vida, a criação, o pecado, o desespero, a loucura, o eterno retorno, deus, a identidade –, emula-se com Herberto Helder, todos os poemas lhe são fiéis, e Os Passos Em Volta (renovando uma possível geografia de experiências). O olhar teo-antropológico habitual do poeta descobre vetustos demiurgos irados com a criação, como se se tivesse simplificado abusivamente os sentidos das palavras.

Escreverei encostado ao autor, expondo desajeitadamente algumas das ressonâncias provocadas pelas setas que me atirou.

A exigência poética obriga a criar no meio da loucura e do sem-sentido, esse é o material de construção. O “estilo”, arte de ordenar, procura conjurar as constantes e irredutíveis metamorfoses, em vão. Não há linhas de composição definitivamente validadas, os astúcias que se usam conduzem sempre a uma ratoeira. De qualquer forma, escreve-se, o poeta escreve, resolvendo enigmas com novos enigmas. Corre atrás da realidade, constantemente fabricada, porque deus não permite que se faça a paz com o fortuito.

Fortuito fora, desvanecimento dentro. O poeta é um não-ser. Órgãos feitos de pó que retornarão ao pó (o orgânico é um breve interregno). A estridência, que por vezes experimenta, só pode ser inconsequente (ainda bem). Tudo está amarrado a uma velha economia do desespero, não é possível sair deste círculo nevrálgico, porém menos ansiolítico do que a esperança (velha fake news). Então, fugindo às cegas para a frente, erigem-se lugares, e lugares, e lugares, e... sempre inóspitos, lugares para morrer. E se vamos resistindo, fragmentados em desconexas variações do eu, sabemos que basta o pecado fisiológico atingir uma pequeníssima parcela do ser para contaminar tudo.

Todavia, parece haver ainda uma consciência pronta a descrever um real que é “uma filosofia das paisagens / que dura sete dias e sete noites”. Claro que “é tudo mentira”, e mesmo quando se acede à sabedoria, ninguém sabe muito bem como, ela é “vil, esmagadora”. É por isso imperativo, diz-nos Eduardo Quina, trabalhar na própria morte, dar-lhe “o sentido do recomeço”. Talvez ela seja “essa força criadora e transformadora”. Talvez, “porque continuamos enclausurados / na mesma ausência”.

 

Poema de abertura:

ESTILO
o poeta não morre da morte da poesia

o texto em movimento
em acto contínuo:
poemacto:
a descodificação do género:

o estilo

a re-criação da forma ao
ritmo de uma unidade de significação

enlouquecemos naturalmente

é esse o ofício do refinamento
da escrita
do medo
esvaziando a loucura, criando a dignidade.
até à sua perda
absoluta

e a solidão ao centro

Postais de Boas-Festas

Árvore da Vida, Gustav Klimt

Árvore da Vida, Gustav Klimt

Há muitos séculos, a cultura semita decidiu transformar os ritos pagãos do solstício de Inverno numa narrativa mais encantatória. Havia palavras e gramática suficientes para essa revolução, e é sabido que sempre que pode haver uma revolução, há. Assim nasceu o Natal (faço uma filologia à la Nietzsche), outra forma de enaltecer as conjuras astronómicas que travavam o avanço da escuridão.

Primeiro, quando ainda éramos biológicos, celebrou-se a emergência da vida e a fortaleza da família ou da tribo. Depois, pouco a pouco, sob o impulso de um cristianismo cada vez mais metafísico, desfiaram-se chamamentos ao Além, misericordioso e enigmático. Continuou-se a louvar a vida, mas era de outro tipo, descarnada.

Finalmente, vieram as generosidade e bondade, sem moderação, ligadas a coisas humanas, demasiado humanas. O festim gargantuesco substituiu qualquer resquício de espiritualidade (mais do que religiosa), agora arremessamos prendas uns aos outros e comemos até à sobre-saciedade. Há, é verdade, uma brisa de mudança no ar, parece insinuar-se uma nova frugalidade, mas está longe de ser relevante.

É neste quadro (talvez imitando Francis Bacon) que me permito desejar-vos, queridos leitores, boas-festas. Se possível retomando a embriaguez original do ciclo lunar, quando ainda se sentia um aperto explosivo no coração porque o dia tinha resistido ao progresso mortífero da noite.

Victor Gonçalves


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O Natal é também um ritual de transição. Todos os anos bebemos à pessoa que fomos nos últimos doze meses, com mais ou menos alívio de abandonar esta pele, abraçando o que é novo com mais ou menos sofreguidão. Celebremos os que já não estão connosco à mesa. Sejamos preguiçosos. Tiremos uns dias para ver filmes, para ler livros, para passar tempo com aqueles que amamos. Talvez façamos menos merda no próximo ano. Talvez seja possível sermos melhores. Para todos um Feliz Natal e um bom 2019.

José Pedro Moreira


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Fra Angelico pintou esta Anunciação em meados do século XV e pode ser vista no Convento de S. Marco em Florença. Não sei se alguém alguma vez escreveu algumas linhas sobre o desastre que este fresco parece ser em termos de linguagem corporal da Virgem. “Porquê eu??, meu Deus!!,” é o que todo o corpo dela diz. O rosto dela deveria expressar a gravidade do momento e a sua inata bondade, a humildade que recai sobre os escolhidos para um dever que em muito ultrapassa as suas capacidades. Mas há na postura do corpo qualquer coisa de defensivo, como implícito nos braços cruzados e que não encontra eco na postura do anjo (embora os braços dele estejam na mesma posição, o corpo inclinado para a frente sugere mais ataque do que defesa, e os braços cruzados são um reconhecimento da tensão no corpo da Virgem). E, no entanto, qualquer coisa no rosto dela trai o princípio de uma abertura.

A vida, assim o prova o ciclo de um ano, está cheia de situações impossíveis, tensas, imprevistas. Politicamente o ano foi um desastre. O mundo é um lugar menos aberto. Restam-nos os pequenos mistérios, a felicidade que existe em coisas inesperadas, a possibilidade de não nos fecharmos no nosso lugar, de querermos viver entre as coisas que nos ultrapassam. E talvez até isso que um frade nascido na periferia de Florença há mais de seiscentos anos entreviu ao pintar as asas coloridas deste anjo doce e um pouco efeminado: o lado misterioso das mensagens que os outros nos trazem, a adequação do imprevisto enquanto resposta tanto para os perigos quanto para as monotonias da existência (se nós não cairmos no desespero ou na indiferença quando eles nos calham), a urgência da vida que nos varre com ela.

Não me apetece decidir muita coisa para 2019, ainda que isso seja mais ou menos inevitável: depois desta breve trégua, o ano novo virá com os seus velhos combates e as suas parvoíces renovadas, mas um dos melhores poemas que li este ano (em Fuck the Polis de João Miguel Fernandes Jorge) acabava com dois ou três versos em que se podia ler qualquer coisa como: come a tua comida, lê os teus livros, vais continuar a existir. Pode existir entre o lado forte do mundo, que ataca, e o lado que se defende, alguma ternura, uma aliança de onde algo de melhor possa vir.

Que sempre que penso na Virgem, grávida sem querer, também pense que o mundo precisava de uma Anunciação pintada por Paula Rego é matéria para outro postal.

Tendo dito isto, um excelente 2019, meus caros leitores!

Tatiana Faia


Que este ano o Natal seja sinónimo de alienação para todos: vivam as fantasias, vivam as desconstruções, mas vivam sobretudo as alienações: é daqui que nasce o caos e do caos também nascem flores.

João Coles

Pier Paolo Pasolini, "Os jovens infelizes"


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Tradução: João Coles


Um dos temas mais misteriosos do teatro trágico grego é a predestinação dos filhos em pagar pela culpa dos pais. Não importa se os filhos são bons, inocentes, pios: se os pais pecaram, têm de ser punidos. É o coro – um coro democrático – que se declara portador de tal verdade: e enuncia-a sem a introduzir ou ilustrá-la, como lhe parece natural. Confesso que este tema do teatro grego sempre o aceitei como algo alheio ao meu conhecimento, que aconteceu «algures» e «noutro tempo». Não sem alguma ingenuidade escolástica, sempre considerei este tema como absurdo e, por sua vez, ingénuo, «antropologicamente» ingénuo.

Mas mais tarde chegou o momento da minha vida em que tive de admitir pertencer, sem escapatória, à geração dos pais. Sem escapatória porque os filhos não só nasceram, não só cresceram, mas alcançaram a idade da razão, e o seu destino, portanto, começa a ser inelutavelmente aquele que deve ser, tornando-se adultos.

Observei com tempo nos últimos anos estes filhos. Ao fim e ao cabo, o meu juízo, por muito que me pareça também injusto e impiedoso, é de condenação. Procurei muito compreender, fingir não compreender, contar com as excepções, esperar por alguma mudança, considerar historicamente, isto é, além dos juízos subjectivos do mal e do bem, a realidade deles. Mas foi inútil. O meu sentimento é de condenação. Os sentimentos não mudam. São eles que são históricos. É isso que experienciamos, que é real (apesar de toda a insinceridade que possamos ter com nós próprios). Afinal – ou seja hoje, dias primeiros de 75 – o meu sentimento é, repito, de condenação. Mas posto que, talvez, condenação é a palavra errada (ditada, talvez, pela referência inicial ao contexto linguístico do teatro grego), tenho de a especificar: mais do que uma condenação, o meu sentimento é, de facto, uma «cessação de amor»: cessação de amor que, com efeito, não dá lugar ao «ódio» mas à «condenação».

Eu tenho algo de geral, de imenso, de obscuro a reprovar aos filhos. Algo que fica aquém do verbal: que se manifestem irracionalmente, no existir, ao «experienciar sentimentos». Agora, posto que eu – pai ideal – pai histórico – condeno os filhos, é natural que, subsequentemente, aceite de algum modo a ideia do seu castigo.

Pela primeira vez na minha vida consigo assim libertar da minha consciência, através de um mecanismo íntimo e pessoal, aquela terrível, abstracta fatalidade do coro ateniense que reitera ser natural o «castigo». Acontece que o coro, dotado de tanta imémore e profunda sabedoria, acrescentava que aquilo de que os filhos eram castigados era a «culpa dos pais».

Pois bem, não hesito nem um momento em o admitir; isto é, em aceitar pessoalmente tal culpa. Se eu condeno os filhos (por causa de uma cessação de amor para com eles), e portanto lhes pressuponho um castigo, não tenho dúvidas de que tudo isto acontece por minha culpa. Enquanto pai. Enquanto um dos pais. Um dos pais que não se tomaram como responsáveis, primeiro, do fascismo, depois de um regime clérico-fascista, falsamente democrático, e que, por fim, aceitaram a nova forma de poder, o poder dos consumos, a derradeira das ruínas, a ruína das ruínas.

A culpa dos pais que os filhos têm de pagar é, portanto, o «fascismo», seja nas suas formas arcaicas, seja nas suas formas inteiramente novas – novas sem equivalentes possíveis no passado? É difícil para mim admitir que a «culpa» é esta. Talvez por razões privadas e subjectivas. Eu, pessoalmente, sempre fui antifascista, e não aceitei nunca o novo poder de que realmente falava Marx, profeticamente, no Manifesto, acreditando que falava do capitalismo do seu tempo. Quer parecer-me que há algo de conformista e demasiado lógico – ou seja, de não-histórico – ao identificar nisto a culpa.

Já ouço à minha volta o «escândalo dos pedantes» – seguido da sua chantagem – ao que estou para dizer. Já consigo ouvir os argumentos deles: é retrógrado, reaccionário, inimigo do povo, que é incapaz de compreender os elementos mais dramáticos de novidade que existem nos filhos, incapaz de compreender que estes são, ainda assim, vida. Pois bem, penso eu, desde que também eu tenha direito à vida – pois, mesmo sendo pai, não é por isso que deixo de ser filho. Além do mais, para mim a vida pode manifestar-se egregiamente, por exemplo, na coragem em desvelar aos novos filhos o que realmente sinto para com eles. A vida consiste antes de mais no impertérrito exercício da razão: incerto nos partidos tomados, e muito menos no partido tomado pela vida, que é um qualunquismo[1] puro. É melhor ser inimigo do povo do que inimigo da realidade.

Os filhos que nos rodeiam, especialmente os mais jovens, os adolescentes, são quase todos eles monstros. O seu aspecto físico é quase aterrador, e quando não é aterrador é incomodamente infeliz. Pelames horríveis, cabeleiras caricaturais, carnaduras pálidas, olhos apagados. São máscaras de uma certa iniciação bárbara. Ou então são máscaras de uma integração diligente e inconsciente, que não faz ter dó.

Depois de terem erguido contra os pais barreiras destinadas a relegar os pais ao gueto, os filhos encontraram-se eles mesmos enclausurados no gueto oposto. No melhor dos casos, estão agarrados aos arames farpados desse gueto, olhando para nós, todavia homens, como mendigos desesperados, que pedem algo apenas com o olhar, porque não têm coragem, nem talvez a capacidade de falar. Estes nem nos melhores, nem nos piores casos (são milhões) têm expressão alguma: só a ambiguidade feita carne. Os seus olhos em fuga, o seu pensamento perpetuamente alhures, têm demasiado respeito ou demasiado desprezo juntos, demasiada paciência ou demasiada impaciência.

Aprenderam algo mais do que os seus coetâneos de há dez ou vinte anos atrás, mas não o suficiente. A integração não é um problema moral, a revolta codificou-se. No pior do casos, criminosos puros e duros. Quantos são estes criminosos? Na verdade, podiam ser quase todos. Não há um grupo de rapazes que se encontre pela rua que não pudesse ser um grupo de criminosos. Estes não têm luz alguma nos olhos: os traços são traços contrafeitos de autómatos, sem que nada de pessoal os caracterize vindo de dentro.

A estereotipia faz deles traiçoeiros. O silêncio deles pode preceder a um trépido pedido de ajuda (que ajuda?), ou pode preceder a uma facada. Eles não são donos dos próprios actos, que é o mesmo que dizer dos seus músculos. Não conhecem bem qual a distância entre causa e efeito. Regrediram – sob o aspecto exterior de uma maior educação escolástica e de uma melhor condição de vida – para uma rudez primitiva. Se por um lado falam melhor, ou seja assimilaram o degradante italiano médio – por outro lado, são quase afásicos: falam velhos dialectos incompreensíveis, ou calam-se, lançando de quando em vez gritos guturais e interjeições todas elas de carácter obsceno.

Não sabem sorrir nem rir. Sabem apenas rir com desdém ou casquinar. Nesta enorme massa (típica, sobretudo, uma vez mais!, do inerme Centro-Sul) existem elites nobres, às quais pertencem naturalmente os filhos dos meus leitores. Mas estes meus leitores não quererão afirmar que os seus filhos são rapazes felizes (desinibidos ou independentes, como acreditam e repetem certos jornalistas imbecis, comportando-se como enviados fascistas num lager). A falsa tolerância também tornou significativas, no seio da massa dos homens, as mulheres. Elas são geralmente, pessoalmente, melhores: vivem efectivamente um momento de tensão, de libertação, de conquista (ainda que de modo ilusório). Mas no quadro geral a sua função termina ao ser regressiva. Uma liberdade «oferecida», com efeito, não pode vencer nelas, naturalmente, os hábitos seculares da codificação.

Claro: os grupos de jovens cultos (de resto, muito mais numerosos que em tempos) são adoráveis porque dão dó. Estes, por causa de circunstâncias que para as grandes massas são até agora somente negativas, e atrozmente negativas, são mais avançados, subtis, informados do que os grupos análogos de dez ou vinte anos atrás. Mas o que podem fazer da sua fineza e da sua cultura?

Portanto, os filhos que vemos à nossa volta são filhos «castigados»: «castigados», enquanto isso, pela sua infelicidade, e mais tarde, no futuro, quem sabe de quê, de quais hecatombes (este é o nosso sentimento, insuprimível). Mas são filhos «castigados» pelas nossas culpas, isto é, pela culpa dos pais. É justo? Era esta, na verdade, para um leitor moderno, a pergunta, sem resposta, do motivo dominante do teatro grego.

Pois bem, sim, é justo. O leitor moderno viveu uma experiência que lhe torna finalmente, e tragicamente, compreensível a afirmação - que parecia tão cegamente irracional e cruel – do coro democrático da antiga Atenas: ou seja, que os filhos têm de pagar pelos pecados dos pais. Efectivamente, os filhos que não se libertam da culpa dos pais são infelizes: e não há sinal mais decisivo e imperdoável de culpa do que a infelicidade. Seria demasiado fácil e, num sentido histórico e político, imoral, que os filhos se justificassem – naquilo que neles há de feio, repelente, desumano – pelo facto de que os pais erraram. A herança paterna negativa pode dar-lhes uma justificação pela metade, mas pela outra metade são eles os responsáveis. Não há filhos inocentes. Tiestes é culpado, mas também o são seus filhos. E é justo que sejam castigados também por aquela metade de culpa alheia da qual não foram capazes de se libertar.

Permanece sempre, todavia, o problema de qual é na verdade a tal «culpa» dos pais. É isto que substancialmente, ao fim e ao cabo, importa aqui. E é tão importante na medida em que, tendo provocado nos filhos uma condição tão atroz e um consequente castigo tão atroz, deve tratar-se de uma culpa gravíssima. Talvez a culpa mais grave cometida pelos pais em toda a história da humanidade. E estes pais somos nós. Coisa que nos parece incrível.

Como já aludi entretanto, devemos libertar-nos da ideia de que tal culpa se identifica com o fascismo velho ou novo, isto é, com o efectivo poder capitalista. Os filhos que hoje são tão cruelmente castigados pelo seu modo de ser (e no futuro, claro, por qualquer coisa mais objectiva e terrível), são também filhos de antifascistas e de comunistas. Portanto, fascistas e antifascistas, patrões e revolucionários, têm uma culpa em comum. Todos nós, de facto, até hoje, com um racismo inconsciente, quando falámos especificamente de pais e filhos, pensámos sempre que estávamos a falar dos pais e dos filhos burgueses.

A história era a sua história. O povo, de acordo connosco, tinha uma história à parte, arcaica, na qual os filhos, simplesmente, como ensina a antropologia das velhas culturas, reencarnavam e repetiam os pais. Hoje mudou tudo: quando falamos de pais e filhos, se por pais continuamos a presumir os pais burgueses, por filhos presumimos que sejam tanto os filhos burgueses como os filhos proletários. O quadro apocalíptico que esbocei acima, dos filhos, engloba burguesia e povo.

As duas histórias, portanto, uniram-se: e é a primeira vez que isto acontece na história do homem. Tal unificação sucedeu sob o signo e vontade da civilização do consumo: do «progresso». Não se pode dizer que em geral os antifascistas, e particularmente os comunistas, se tenham deveras oposto a uma unificação do género, cujo carácter é totalitário – pela primeira vez verdadeiramente totalitário – apesar de o seu carácter repressivo não ser arcaicamente policial (e quando muito recorre a uma falsa permissividade).

A culpa dos pais, portanto, não é apenas a violência do poder, o fascismo. Mas também: primeiramente, a remoção da consciência, por parte de nós antifascistas, do velho fascismo, termo-nos comodamente libertado da nossa profunda intimidade (Pannella) com este (termos considerado os fascistas «os nossos irmãos parvos», como diz uma frase de Sforza relembrada por Fortini); segundo, e sobretudo, a aceitação – tão culpada quanto inconsciente – da violência degradante e dos verdadeiros, imensos genocídios do novo fascismo.

Porquê tal cumplicidade com o velho fascismo e porquê tal aceitação do novo fascismo? Porque há – e eis o ponto da questão – uma ideia condutora sincera ou desonestamente comum a todos: ou seja, a ideia de que o mal maior do mundo é a pobreza e que por isso a cultura das classes pobres deva ser substituída pela cultura da classe dominante.

Noutras palavras, a nossa culpa enquanto pais consistiria no seguinte: em acreditar que a história não é nem possa ser outra senão a história burguesa.

In Lettere luterane

1 NT: o “qualunquismo” está associado ao movimento político Fronte dell'uomo qualunque (Frente do homem qualquer, ad litteram), que nasceu da revista homónima publicada em Dezembro de 1944 por Guglielmo Giannini. O “qualunquismo” caracteriza-se pela desconfiança nas instituições, nos partidos políticos, na classe política e na política em geral, que é considerada um obstáculo à autonomia e à livre escolha do indivíduo. No debate político, o termo “qualunquista” é geralmente utilizado de modo pejorativo. É uma atitude condenada por indivíduos politicamente activos na sociedade, como Pasolini, que sublinham os riscos da renúncia em participar num sistema democrático.

Pós-verdade e redes sociais

A Morte de Sócrates de Jacques-Louis David, 1787

A Morte de Sócrates de Jacques-Louis David, 1787

Agora que o mundo parece inflamar-se sem remédio, depois de décadas a acumular material incandescente (avaria do elevador social, degradação ambiental irreversível, migrações massivas, pirâmide demográfica invertida, fragmentação cultural, desconsideração pelos factos...), é fundamental retomarmos, filosoficamente e politicamente, a questão da verdade. Seguirei de perto as reflexões de Myriam Revault d’Allones, filósofa francesa, e do seu último livro La Faiblesse du vrai. Ce que la post-vérité fait à notre monde commun (Seuil, Outubro 2018).

O dicionário de Oxford define a pós-verdade como a desvalorização dos factos, menos importantes do que a sua apreensão subjectiva. É isto que permite aos discursos políticos modelar a opinião pública, apelando às emoções muito mais do que à realidade dos factos. O que importa é o impacto. A era da pós-verdade é também a do pós-factual. Não se acomode, porém, esta nova ordem epistemológica na fórmula nietzschiana de que “não há factos, apenas interpretações” (nota de 1886-87); tal postulado não elimina ou dissolve a verdade, denuncia somente que os factos brutos, ou puros, não significam nada. Para fazerem sentido têm de ser ordenados e contextualizados, decifrados e interpretados. Assim, foi ainda em nome da verdade que Nietzsche defendeu o exercício de desconfiança. Inserindo-se no que se chamou “filosofias da suspeita”, Marx, Nietzsche e Freud, contestação da omnipotência do sujeito ou da ilusão de uma consciência inteiramente transparente. O que se propôs foi uma arte da interpretação que permitisse uma aproximação mais efectiva à verdade, nada que tenha que ver com fórmulas do tipo “a cada um a sua verdade” ou “é a minha verdade”.

A pós-verdade remonta à emergência de um modelo político assente na opinião e decisão do grande número, isto é, à emergência da democracia. O processo de condenação à morte de Sócrates (no relato platónico, sobretudo do Fédon), filósofo, é importante dizê-lo, devotado incondicionalmente à descoberta da verdade, decretado pela cidade democrática de Atenas. O que fica desse texto, que representaria uma parte importante do senso comum dos cidadãos atenienses, é que o sacrifício da verdade é o corolário de uma sociedade democrática governada por um povo irresponsável e iludido, instalando-se para a posteridade uma suspeita alargada sobre a prática política. Muitos séculos depois, 1984 de George Orwell reaviva essa preocupação, mostrando o resultado de uma sociedade onde toda a referência à verdade tivesse desaparecido. Uma sociedade totalmente negacionista (onde fosse lícito e habitual enunciar opiniões que neguassem a realidade) impediria ao mesmo tempo a organização de um pensamento sobre o real e a troca fértil de opiniões e experiências sensíveis. Uma subjectivação e manipulação generalizadas anularia a possibilidade de se desenvolver uma sociedade livre, fraterna e feliz.

Hoje, vive-se a ressaca, em vez do desenvolvimento, da modernidade que a partir do século XVI, e sobretudo do movimento Iluminista mais tardio, instaurou o primado do pensamento crítico sobre o dogmatismo das religiões da revelação. A compreensão humana passou a ser guiada por leis racionais e a verdade, relacionada com os factos da realidade, um desígnio que se vai cumprindo à medida que o processo de esclarecimento, “iluminação”, faz emergir da obscuridade a verdade dos factos. A ressaca (esse mal-estar que aparece depois do frenesim) deve-se em grande medida à modernidade não ter cumprido a promessa (mais imaginada do que enunciada) de se atingir uma verdade total, ou quase total, e da aquisição do saber ser difícil e demorada, acrescentando-se que em muitos casos há um elitização dessa responsabilidade, justamente devido à complexidade de parcelas significativas da realidade, o que obriga à profissionalização do conhecimento.

A esta ressaca acrescenta-se o poder das redes sociais em irradiar informações não confirmadas, ou verificadas, contraditórias, infundadas e mesmo declaradamente mentirosas, as fake news (os franceses também usam o termo “infotox”). Ora, é nas redes sociais que muita gente se informa (a maioria nos menos de 30 anos), onde a falta de verificação (uma democratização informativa pífia) e o poder de qualquer notícia com impacto emotivo para se viralizar são o modo de operar dessas plataformas. Segundo Myriam Revault d’Allones, as “redes sócio-numéricas fazem circular incessantemente pseudo-factos, respondendo antes de mais ao ponto de vista de alguém que pensa e, sobretudo, deseja que sejam verdadeiros”. Estes factos reforçam crenças já existentes, podendo falar-se, para esta autora, em “bolhas cognitivas”, já que os algoritmos que selecionam as informações que consultamos propõem uma visão do mundo conforme às nossas expectativas. O actual “mercado cognitivo”, ao reforçar acriticamente as crenças dos utilizadores, facilita o ensimesmamento cognitivo e emotivo. Dificultando o pensamento racional e factual, centro nevrálgico das sociedades democráticas tal como tem vindo a ser imaginadas e desejadas. Algo que poderá estar a mudar, preferindo-se agora em muitos sítios, e muitas mentes, regimes políticos mais simples, autoritários e comunitaristas.