Cumprir Eduardo Lourenço

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I

Sucederam-se as orações fúnebres para atenuar a tristeza que a notícia da morte de Eduardo Lourenço nos trouxe. Ao mesmo tempo, teceram-se os maiores elogios à sua postura e ao seu modo de pensar, provocando uma certa exaltação. Destacou-se que nunca deixou de pensar bem, de ser afável e, à sua maneira, modesto. Que ensaiou permanentemente desvelar as camadas de sentido para lá fanfarronice epidérmica, do messianismo arcaico, muitas vezes invertido (“nunca chegaremos a lado nenhum”) ou do esquecimento que enfia os malogros num saco escuro com medo de instabilizar as nossas frágeis e coletivas maneiras de mitificarmos, mitos superiores e inferiores, nobres e vis, gerais e singulares (da ideia do “quinto império” até ao individualíssimo “pelos menos sou verdadeiro”, o que, veja-se, conduz ao paradigma bíblico pré-ficcional). “Determinações de quase autodefesa” perante o abismo do “zero à esquerda”. Mas talvez a “figura capital da raça humana seja Narciso”.

Muito se disse sobre o seu lugar de psicanalista nacional (Labirinto da Saudade), nós que somos tão avessos a apalpar entranhas; de intérprete supremo da literatura nacional, iluminando, entre outros, Fernando Pessoa (Pessoa Revisitado) com as linhas de sentido mais inteligentes que por enquanto se podem imaginar; de corajoso e lúcido heterodoxo (Heterodoxia I). Muito se disse, mas falta dizer muito mais, mesmo não se sabendo bem o quê (o tempo reescreve as obras maiores).

Mas tenho a firme crença de que falta posicioná-lo como a pedra angular a partir da qual, num processo de emulação crítica, devemos pensar. Reconheço o radicalismo da ideia, mas, reparem, se outros o fizeram, com grande proveito coletivo e individual, a partir de Descartes, Kant, Dostoievski, Ortega y Gasset, David Hume, Shakespeare, Dante, Platão, Aristóteles…, por que razão continuamos a saltar de ponto de partida em ponto de partida, achando quase sempre que seremos sobretudo nós a traçar a linha de chegada? Tudo isto sem demasiado talento ou vigor.

Eduardo Lourenço pode dar-nos a solidez de uma visão do mundo na e a partir da qual podemos pensar, e é disso que precisamos para rasurar definitivamente o “A pensar morreu um burro”. Não num qualquer projeto de dogmatização (que assombraria sem remédio o seu legado), mas para o projeto crítico que nunca tivemos e que nos levaria finalmente até ao esplendor das origens gregas e romanas, no fundo até à origem do projeto de uma cultura europeia, a sermos “bons europeus”.

II

Conheço muito bem a vulgaridade da autorreferencialidade. Por isso, na história que vou contar dou-me na minha universalidade, naquilo que está para lá de mim, da minha facticidade e contingência. Era uma vez um pós-adolescente cheio de preconceitos, sendo o maior de todos contra a consistência, por vezes inexpugnabilidade, da opacidade: embriagado por meia dúzia de raciocínios lógicos e por uma escolarização baseada no empinanço, assimilação e regurgitação das “verdades” dos manuais, achava, o eu universal achava que nada podia resistir aos ataques da razão. Era hegeliano sem o saber.

Caiu-me então nas mãos O Labirinto da Saudade, quando os antagonismos da Revolução já tinham serenado e tudo apontava para o mealheiro da Europa, da CEE. E, por uma razão suficientemente obscura para me permitir estar ao lado dos intelectuais que leram Nietzsche na adolescência sem perceberem patavina, pus-me, finalmente, a pensar. Não, bem entendido, com o jogo de linguagem de hoje (continuando, porém, no incipiente), a pensar que afinal tudo podia ser outra coisa. Ter-me-á vindo isso da incredulidade superior de Eduardo Lourenço, com a qual apanha os reais ziguezagues do povo, especializado em dar sentido ao sim e ao seu contrário? Do vínculo que mantinha com a complexidade do real, apesar das célebres máximas com que parece capturá-lo? Da ironia que sentimos correr paralela à descrição mais séria? Da instabilidade que provoca nas grelhas interpretativas e nas próprias categorias que utiliza?

Mantenho as dúvidas, gosto, aliás, delas. Conferem uma certa segurança ao meu campo anti-dogmático. E mantenho o deslumbre sem condições sempre que releio O Labirinto da Saudade, livro para a vida. Quem poderia ter dito 2 ou 3 anos depois do 25 de Abril: «o povo português passou da boa consciência de um sistema semitotalitário, ou mesmo totalitário, para a boa consciência revolucionária, sem mesmo se interrogar sobre tão complexa e súbita conversão das Forças Armadas fiéis ao antigo regime em força democrática e vanguardista.»

Espero que, sem cairmos numa paixão transbordante e mecânica, peguemos nas suas Obras Completas (em fase de edição pela Fundação Calouste Gulbenkian) e façamos delas um mapa conceptual para navegarmos de forma mais lúcida e ousada. Tenhamos, finalmente, o nosso Livro.

 

Charles Bukowski, "o banho"

Tradução: João Coles


gostamos de tomar banho depois
(eu gosto da água mais quente do que ela)
e o rosto dela sempre suave e cheio de paz
e ela lava-me primeiro
ensaboa-me os tomates
levanta-os
aperta-os,
depois lava-me a gaita:
“eh lá, isto ainda está duro!”
depois lava-me os pêlos lá em baixo, –
a barriga, as costas, o pescoço, as pernas,
eu sorrio sorrio sorrio,
e depois lavo-lhe a ela...
primeiro a rata,
ponho-me atrás dela, a minha gaita entre as nádegas dela
ensaboo-lhe suavemente os pentelhos,
lavo-lhos num movimento delicado,
talvez me demore mais do que o necessário,
depois atrás das pernas, o rabo,
as costas, o pescoço, viro-a, beijo-a,
ensaboo-lhe os seios, depois a barriga, o pescoço,
as coxas, os tornozelos, os pés,
e depois a rata, mais uma vez, para dar sorte...
mais um beijo, e ela sai primeiro,
seca-se à toalha, às vezes canta enquanto ali me demoro
ponho a água mais quente
desfrutando dos bons momentos do milagre do amor
e só depois saio...
é normalmente de tarde e faz silêncio,
e enquanto nos vestimos falamos sobre o que mais
poderíamos fazer,
mas estar juntos resolve quase tudo,
na verdade, resolve tudo
pois enquanto estas coisas estiverem resolvidas
na história entre mulheres e
homens, é diferente para cada um –
para mim, é esplêndido o suficiente para relembrar
após as memórias de dor e de derrota e de infelicidade:
quando me levares isto
fá-lo lenta e docemente
fá-lo como se estivesse a morrer no sono em vez de
na minha vida, ámen.


the shower

we like to shower afterwards
(I like the water hotter than she)
and her face is always soft and peaceful
and she'll watch me first
spread the soap over my balls
lift the balls
squeeze them,
then wash the cock:
"hey, this thing is still hard!"
then get all the hair down there,-
the belly, the back, the neck, the legs,
I grin grin grin,
and then I wash her. . .
first the cunt, I
stand behind her, my cock in the cheeks of her ass
I gently soap up the cunt hairs,
wash there with a soothing motion,
I linger perhaps longer than necessary,
then I get the backs of the legs, the ass,
the back, the neck, I turn her, kiss her,
soap up the breasts, get them and the belly, the neck,
the fronts of the legs, the ankles, the feet,
and then the cunt, once more, for luck. . .
another kiss, and she gets out first,
toweling, sometimes singing while I stay in
turn the water on hotter
feeling the good times of love's miracle
I then get out. . .
it is usually mid-afternoon and quiet,
and getting dressed we talk about what else
there might be to do,
but being together solves most of it,
in fact, solves all of it
for as long as those things stay solved
in the history of women and
man, it's different for each -
for me, it's splendid enough to remember
past the memories of pain and defeat and unhappiness:
when you take it away
do it slowly and easily
make it as if I were dying in my sleep instead of in
my life, amen.

Preparação para futuro nenhum

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Um possível retrato do nosso tempo, infectado pela cacofonia quotidiana (talvez já não haja reflexões puras, amigas do universal), parece fazer-se em torno da noção de futuro. Noção preenchida por pensamentos e, sobretudo, sentimentos. Como pensamos e sentimos o futuro?

Em primeiro lugar, parece claro que o futuro já não ilumina o presente. Não se dá ainda o caso de assumirmos uma cosmologia geral de uma Idade de Ouro pretérita, mas em pouco tempo, e não apenas devido às atuais pandemia sanitária e crise ambiental (que por si sós têm força bíblica), dividimos por muitos a crença, ingénua diga-se, do progresso imparável, de um futuro que viria, como nalgumas religiões maiores, conjurar todos os males da humanidade.

Isso oferecia um capital de esperança incomensurável, sustentado em duas ou três novidades tecnológicas, embebidas, por sua vez, em retórica comercial e política. Para lhe resistir era preciso ou uma heterodoxia lúcida, pagando-se o preço do isolamento social, ou pertencer a uma comunidade de neo-selvagens, alimentada pela pose do guru e psicotrópicos biológicos.  

Hoje, a ortodoxia entrou em depressão, só se realçam as disforias, que acumuladas fazem já do futuro uma consistente distopia, esse não-lugar cheio de mal. O inferno parece estar à nossa frente. E aqui penso em duas alternativas (eu, que sou de um signo astrológico estranho): ou, como dizia Karl Valentim (comediante berlinense), aceitamos que “Dantes o futuro era melhor”, e caímos numa boa ou má resignação; ou, como escreveu Philip Roth, “preparamo-nos para futuro nenhum” (Os Factos – Autobiografia de um Romancista), como quem decide vestir-se a preceito para ser fuzilado em segredo.

Empobreceu-se a economia (sentido lato) da redenção, sem futuro e sem deuses (que, aliás, viviam nesse tempo), nem uma extrema coragem da simplicidade nos poderá afastar do abismo, que numa escala planetária será sempre auto-induzido. Pois é, o futuro é apenas o nosso futuro, podemos assim esperar, fora do egoísmo da espécie, que tudo isto não passa de uma pequena nota falsa na partitura infinita do universo. Recordo que, entre outros, Lars von Trier soube, em Melancholia, sentir isso mesmo antes de nós.

Notas sobre Poesia Contemporânea Portuguesa #2. “Par de Olhos” de Inês Morão Dias (Fresca, 2019)

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 Vivemos num mundo variado e disperso (ou vivíamos quando comecei a escrever este texto). Parece que foi de uma deambulação por lugares de todos os dias, de um encontro nas ruas com uma mulher que trabalhava numa esquina à noite e que se chamava Carlota Valdivia, que em 1904, em plena depressão da fase azul, Picasso pintou Celestina. Muitas coisas acontecem nesse quadro eminentemente estático. Nas cores e na figura esguia e de buço por fazer de Celestina há uma austeridade que lembra certas figuras de El Greco. Celestina tem uma idade avançada e falta-lhe um olho, e Picasso pintou-a no que parece ter sido, pelo que lhe fica inscrito no rosto, um momento no intervalo de qualquer outra coisa mais importante, como uma pausa de um  prolongado enfado de pendor sarcástico, quando Celestina acorda dessa letargia e sente um certo alarme que não sabemos bem o que é, e que talvez também ela não saiba bem o que seja, mas tem qualquer coisa que ver com o facto de ser vista. Há também o facto de que, passando-se isto na fase azul, ela estar completamente representada em tons de azul, e no olho que lhe falta o azul é tão delicado que Celestina, que não é de todo nem jovem nem bela, com o seu olho ausente nos faz pensar no olho turquesa  que existe no rosto de outra mulher que, por um acidente da história, no busto que a imortaliza ficou também com um olho só, esse busto é o da rainha do Egipto, Nefertiti, que pouco poderá que ter que ver com Celestina: exceptuando pelo facto de só entre ambas existir um par de olhos.

Porque visualmente falando Celestina surge complicada pela relação de Picasso com a cor azul, quando o expressionismo de Picasso já olha para frente, este é um daqueles quadros da modernidade cujo objectivo não é tanto uma representação realista do rosto de uma mulher que de outro modo podia ser banal, a falta de olho, o buço por fazer, mas aquilo que uma cor que nunca podia ser a de Celestina interpreta. O que quer que o azul de Celestina possa querer dizer, não há interpretação que o resolva, a instabilidade permanece e é adensada pelo olho em falta. Há outro lado de Celestina, que fica implícito no espaço alucinado pelo quadro, e que é a simpatia de Picasso por uma humanidade oprimida, explorada, pobre e sem voz. O mundo de Par de Olhos, primeiro livro de Inês Morão Dias, tem muito que ver com tudo isto.

Par de Olhos, poderia, pelo menos em sentido literal, estar no universo representacional oposto ao de Picasso e de Celestina, mas o título é, claro, ambíguo. Este par de olhos assoma primeiro à vista num dos poemas do princípio, que começa com a palavra arejar, e é uma sinédoque, para um tu que, assim nos é dito, convertido em destino, permite que se sobreviva à vergonha do narcisismo. Muito do que acontece neste livro tem que ver com um impulso em direcção ao exterior, ao outro, que embora pareça ser da ordem da curiosidade que matou o gato, é também necessário para que, como se lê nos últimos versos do livro se cultivem jardins, “porosas miniaturas/ entre o fora/ e o dentro.”

Há um efeito de desordem nos poemas de Par de Olhos que instaura uma certa instabilidade, que é tanto espacial como sentimental, que eles navegam mas não resolvem, um lado lúdico constante que convida o leitor a entrar mas que o deixa em estado de alerta porque tende a resistir a todas as interpretações. As linhas de força de Par de Olhos são linhas de instabilidade que têm que ver com os movimentos, mentais e de flanêrie por uma cidade que é e não é o Porto no século XXI, de um sujeito urbano que mantém um caderninho num saco com outros objectos (ver p. 16), e que parece não ter grandes problemas em declarar-nos os seus métodos. Há três ou quatro poemas que poderiam servir como artes poéticas, mas talvez aquele que seja mais esclarecedor desse ponto de vista, seja o poema da página 26, onde se lê: “Na frincha de um metro e/ pouco entre a linha do comboio e a/cerca/ há sempre roupa pendurada/ ao sol.../ terra fértil/ como escrever nas margens.” Sem dúvida que Par de Olhos é um livro escrito a partir de diversas margens, mas elas também servem para chegar a momentos inesperadamente altos, como naquele poema (p.30) em que se diz “quero chegar às coisas/ certas” mas a única percepção que se declara é aquela em que lemos “percebo que a força/ motriz que haverá/ em ti pousou/ numa flor real... e o desejo, digam-me/ onde está.”

Há revelações mais imprecisas, de ordem mais universal, que obedecem a equilíbrios de entendimento entre as pessoas, que são de ordem mais fugaz e difícil de classificar, como por exemplo quando o olhar pousa no de uma professora, “a vertical e magnífica bitkova,” e ambas, narradora e narrada, entendem estar dentro do mesmo segredo, o que permite que mergulhem, ou desenhem, o que na verdade é uma metáfora para o desenho, o que se descreve como a “mais simples reconfiguração do mundo,” como todos os gestos cuja finalidade é compor um lugar. Estes gestos regressam, e na verdade concebem momentos que alicerçam o livro, definem o espaço que ele ocupa, desenham, por exemplo, toda uma sequência que vai de um poema chamado “crónica,” em que uma série de humanos se juntam para dançar num sétimo andar, em que se descobre que o significado de uma palavra pode ser prima de uma mão que sorri num determinado dia. Há em todo o livro um íntimo elo entre as metamorfoses que o movimento através do espaço permite, e aquelas que são criadas pela linguagem, como esta, em que uma palavra é exposta como prima de uma mão, e assim de um gesto. Os encontros mais banais por vezes encerram revelações decisivas, expõem o quão facilmente podemos ser salvos ou perdermo-nos: por exemplo, num poema (p.74), alguém sobe a rua com um mau pensamento, e acaba a ajudar uma senhora sozinha e que, cheirando muito a álcool, não consegue baixar o volume da música que um filho que desapareceu de cena deixou a tocar, e quando esta mulher lhe toca o braço, percebemos que este poema é a história deste toque, desta mulher que se ri, “como se tivesse parado/ só para me travar o pensamento.” Num dos poemas mais fundamentais do modernismo, escrito por W. B. Yeats em 1919, há a descrição de um falcão que gira e gira no ar sem poder ouvir o falcoeiro, o que deixa em nós leitores, a impressão de círculos concêntricos que se vão tornando cada vez mais afastados, e o verso que fecha a descrição desse movimento do falcão, é aquele que conclui que o centro não se sustém. Os poemas de Par de Olhos não têm um centro, muitas vezes parece que entramos por um stream of consciousness, mas, não havendo um centro, há um olhar lúdico que parece colecionar revelações fundamentais para viver num mundo em que as narrativas, pelo menos as que estão supostas nestes poemas, não são muitas vezes teleológicas, isto é, não pendem para um fim, o que significa que o objecto das narrativas destes poemas não é o utilitário. Há, de resto, uma certa resistência a isto, numa cuidadosa distinção entre aquilo que é a busca de um sentido que ultrapassa quem fala nestes poemas, e uma tendência para o sermão. Ou seja, aquilo que separa a poesia da retórica. Há (p. 76) um verso em que se lê, “a epístola não poderá dar lugar ao sermão.../ a epístola ora procura poiso ora se vira, pêndulo complicado no seu apoio/ supersticioso na secreta/ esperança/ de uma atenção não dita/ aos rebentos das túlipas/ aos títulos do jornal com os seus cúmplice/ aos ninhos de horizonte/ a epístola tem um fim.”

Todos estes momentos demasiado altos, ao longo do livro, dependem de revelações ou epifanias efémeras, cuja luminosidade fica connosco, mas é muitas vezes alicerçada num sentido de humor que roça a autoparódia, o que só sublinha a instabilidade. Há poemas que são sobre preocupações mundanas, no melhor sentido do termo, com os limites do espaço, com copos de vinhos e sandes comidas às horas de almoço, com uma relação entre profundidade e rasura, interior e exterior, cujo diálogo ambivalente com os sujeitos que nelas pousam os seus pares de olhos só pode ser tornada óbvia através de palavras, mais especificamente as que se leem em poemas como este  “o lado de fora dos anos/ dois mil/ está do lado de dentro/ de todos os poços que/ lado a lado/ são fundos (p.8),” o que tem uma equivalência com as coisas que ficam por ser ditas, que permanecem à superfície sem se esclarecerem.

Deve ser por isso que uma das grandes preocupações éticas deste livro tem a ver com o cinismo, que alicerçado na contradição é uma forma de hipocrisia – não me parece, de outro modo, que haja em Par de Olhos grande tendência ou paciência para moralismos. A hipocrisia surge no poema “Mastiga a contradição (p.13),” que vem com um eco de Sophia, e daquele poema sobre as pessoas sensíveis que nunca matariam uma galinha, mas não têm grandes problemas em comê-las. A versão da Inês para isso reza assim: “...o cinismo/ ... é usado com frequência/ entre refeições mas a/ que tão bons corações se/ apegam como se fosse pão...”

            Há, claro, aquilo que nos salva do cinismo: a desconstrução é ainda um exercício sobre a forma humana, um modo de apontar direcções. “One meets another” (p. 62) é provavelmente o poema mais explicitamente erótico de Par de Olhos, descreve e marca as posições de dois corpos no espaço, o modo como se enredam e desenredam um no outro, um do outro, traçando a sua própria história, mas o ponto central do poema é não este momento, mas o modo como as histórias começam, existem antes de chegarmos a elas como pontos de referência, ainda que depois se desfaçam, a função do poema é registar uma história que se vai lendo “nas legendas das imagens/ estrábicas da dispersão/ e desatenção/ ao respirar/ que é a lava dos dias que se/ agarram/como bacias do corpo humano/ vertendo realidade/... que de través ou/ resvés disso/ se desvaneceram.” O sentido é algo que se isola por um momento, que se entrevê.

No entanto, o último poema do livro, “Paisagem” (p.88-89), talvez no contexto da poesia contemporânea portuguesa exista no mesmo contexto de conversa cívica a que a recentemente a antologia Três Bucólicos Ingleses: John Clare, Thomas Hardy, Edward Thomas (selecção e tradução de Ricardo Marques, Elysium, 2020) se refere: a da nossa relação com as paisagens urbanas e naturais em que vivemos, com o planeta, em última análise, lemos versos que já citei acima: “e contudo na hesitação/ entre deambular e a autofagia/ jardins cultivam-se// porosas miniaturas/ entre o fora e o/ dentro.” Pode bem ser que estejamos a viver num tempo que não tem um centro, um ponto que Par de Olhos retoma de velhas poéticas dos modernismos e eleva a aspecto central da sua poética, mas também isto é elusivo. O livro traça afinal o seu próprio caminho. A dispersão de que nos dá conta é-nos proposta com um grão de sal e é este grão de sal afinal o objecto fundamental do livro. É o que nos recorda, como os versos finais, que as linhas que desenhamos, sempre que nos viramos para fora e nos perdermos nos enredos que nos rodeiam, têm as suas zonas de contágio, são os jardins que afinal vamos cultivando.

 

Tatiana Faia

Lisboa, Março de 2020

Oxford, Novembro de 2020

O Século Pessoa

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«À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno

É desta forma que se inicia o editorial (Prometeu e Fausto) do n.º 10 da revista Electra, texto inspirador e esclarecedor de José Manuel dos Santos e António Soares. O “assunto” (tema central) é o “Trabalho e pós-trabalho”, e confirma mais uma vez que se trata da melhor revista de ideias (como chamar-lhe?) editada em Portugal.

Evocar, por vezes invocar, Fernando Pessoa para escolhermos a lente que nos ajude a compreender a fragmentação dos fenómenos maiores (Deus, Verdade, Sentido...) em epifenómenos capazes tanto de fanatizar (trumpismo, nacionalismo, racismo, sexismo, igualitarismo...) como de alienar (no pólo da aversão: trumpismo, nacionalismo, racismo, sexismo, igualitarismo...). É porque Pessoa, como referem José Manuel dos Santos e António Soares, punha na “exclamação metálica” do excerto que citámos da Ode Triunfal uma “voz paroxística, paradoxal e imparável”, como era muitas vezes a do heterónimo Álvaro de Campos.

A tecnologia, que não é apenas uma forma de designar instrumentos mais ou menos complexos que complementam o nosso agir, mas um ecossistema de racionalidade (“logia”) que destaca a importância das coisas fabricadas para a emancipação da espécie humana (visão prometeica, porventura a predominante em Álvaro de Campos). A esta utopia, que continua a carburar a pleno vapor (veja-se como se abafa a responsabilidade humana pela degradação, sem remissão, ambiental martelando numa tecnofilia salvífica), junta-se, como força inversa, uma distopia de cariz faustiana (energia nuclear, engenharia genética, sobre-comunicação telemática, adições digitais...).

Neste caso, Fernando Pessoa, na voz de Álvaro de Campos, celebra a autossuperação da modernidade (económica e filosófica) em direção à pós-modernidade, a passagem da racionalidade auto-domesticada às racionalidades intensificadas por eficiências de contexto, libertas da totalidade, divina (Descartes) ou laica (Hegel).

II

Mas há outro (outros) Fernando Pessoa. Claro, o que se prolonga em Alberto Caeiro, naturalista solar, simplificador, mestre de Mindfulness numa época em que quem não pensava até ao esgotamento ou se dispersava em prolífica confusão era com certeza pobre, pobre de mundo e de bens, cordeiro de Deus. Caeiro, com Walt Whitman a seu lado, traçou uma alternativa antes do tempo, que agora parece ganhar os discursos dos que se enlearam em frenéticos círculos de ganhar/pagar (círculo existencial). Mas não vai muito além de um queixume adornado, os poucos neonaturalistas que vivem em Portugal vêm de outras geografias, com mapas mentais que por cá raramente se reconhecem como válidos.

Mas temos sobretudo Vicente Guedes e Bernardo Soares, narradores dessa obra infinita (porque pode ser composta pelos editores – uso a de Teresa Sobral Cunha para a Relógio D’Água – e porque aponta sempre para lado nenhum, mesmo quando verticaliza a hermenêutica e perscruta as entranhas do organismo humano) que é o Livro do Desassossego. Com ele entra-se e sai-se da pós-modernidade. A entrada dá-se pelo perspectivismo (“eu não creio, é claro, que haja factos”, “há metáforas que são mais reais do que as pessoas que andam na rua.”), a saída pelo cansaço, exílio e absurdo (“Absurdemos a Vida, de leste a oeste”, “Não desembarcar não ter cais onde se desembarque.”, “Nós nunca nos realizamos”, “Os homens são fáceis de afastar: basta não nos aproximarmos.”). Recorde-se que a pós-modernidade era utópica, quis trocar a firmeza cinzenta de Platão da Verdade que oprime pela dança hedonista epicurista, a verdade pela felicidade, laica e singularizada; uma economia da euforia à la carte.

No Livro do Desassossego, traduzido em cerca de 30 línguas, património francês mais do que português, fecha-se, antes da abertura, a pós-modernidade. Teologia negativa, leva a sério um perspectivismo que desemboca numa nova totalidade: a do Nada. É, aliás, contra isto que, sem o saberem, os pós-modernos franceses se rebelarão apontando o dedo ao niilismo de L’être et le néant (O Ser e o Nada). Mas em Sartre ainda havia luz, a da liberdade, mesmo que fosse uma condenação. Bernardo Soares e Vicente Guedes dizem que são mais velhos do que o tempo e o espaço porque são conscientes, ou seja, vivem nos primórdios do tem-de-ser, da ausência de alternativas, no preâmbulo do preâmbulo, na consciência pura que só pensa o que tem-de-ser pensado.

III

Por tudo isto, este século será o de Fernando Pessoa (é uma aposta quase a la Pascal). A liberdade está subjugada pela consciência do tem-de-ser (que na sua dimensão mais reduzida, mas sobre-mediatizada, se traduz pelo “politicamente correcto”). Não nos atrevemos a imaginar novos sentidos, estamos presos aos cuidados intensivos, os que fazem falta à vitalidade orgânica dos doentes, mas também aos que cuidam intensivamente de nos dar a pensar novas rotinas mínimas (o métro, boulot, dodo – metro, trabalho, cama – do Maio 68). E quando queremos extravasar (exílio de sobre-abundância), o dever cívico (só agora importamos isso) põe-nos uma máscara que permite somente a reverberação estéril, o demiúrgico que possa sair da nossa boca ricocheta nos panos sanitários e regressa exausto ao ponto de partida.

Estivemos dois séculos a seguir, consciente ou inconscientemente, a máxima de Friedrich Hölderlin: “Onde está o perigo, está também aquilo que salva”. Este século, pessoano, cabe agora nisto que ele escreve: “Habito a sombra e o sol morreu comigo.”