"Advertência", de Antonio Delfini

Tradução: João Coles


Não venham comigo
porque sou sozinho
E andar com solitários
é como andar à noite
pelas ruas sem luz
Eles não vos dão nada
que vos sirva na vida
São pessoas pobres
que não têm o que dizer
a não ser deus meu meu deus
Ou sem dinheiro ou sem ideias
que vos sirvam
São todos pobres
todos abandonados
com um sorriso triste
sobres os lábios brancos
Sabem gesticular
sabem balbuciar
mas só de maneira estranha
Vocês não nos compreenderiam

Não se entediem por amor da santa
deixem-me inocente
do vosso tédio

Antonio Delfini, Poesie della fine del mondo, Einaudi


Avvertimento

Non venite con me
ché sono solo
E andar coi solitari
è come andar di notte
per le strade senza luce
Essi non vi danno nulla
che vi serva nella vita
Sono gente povera
che non ha da dire
se non dio mio mio dio
O senza soldi o senza idee
che facciano per voi
Sono tutti poveri
tutti abbandonati
con un sorriso triste
sulle labbra bianche
Sanno far dei segni
sanno balbettare
ma solo in modo strano
Voi non ci capireste


Non vi annoiate per carità
lasciatemi innocente
della vostra noia

Antonio Delfini, Poesie della fine del mondo, Einaudi

Des musiques plus intimes de Coralie Gourdon (voz e interpretação de Roberto Salazar)

Um amigo acabou de escrever uma tese de doutoramento sobre Joseph Brodsky, que eu acabei de ler nos últimos dias. Entre o material que ele discute há um passo de um ensaio chamado “Spoils of War”[1] em que Brodsky fala de um conjunto de postais que uma rapariga lhe ofereceu para o seu aniversário:

 

            They belonged, she said, to her grandmother, who went to Italy for her honeymoon shortly before World War I. There were twelve postcards, in sepia, on poor quality yellowish paper. The reason she gave them to me was that at about that time, I was full of two books by Henri de Regnier I’d just finished; both of them had for their setting Venice in winter: Venice thus was then on my lips…

 

A relação de Brodsky com os postais de Veneza é marcada por outros elementos que aparecem noutros ensaios, a nostalgia pelo ocidente, o exílio, o modo como a cultura – a chamada alta cultura e a cultura muito popular e perecível, como aquela a que pertencem postais – expande a nossa relação com o espaço e com o tempo.

Em Des Musiques Plus Intimes, uma curta-metragem de Coralie Gourdon gravada num pequeno apartamento nos arredores de Paris nos primeiros meses da pandemia, ninguém lê Brodsky e não há postais, mas há um poster de um quadro de Wifredo Lam e um mundo de objectos quotidianos, da frigideira onde o óleo ferve à chave deixada do lado de dentro da porta. A estes opõem-se por vezes planos mais amplos, a amplitude do mar algures no Mediterrâneo, a imensão das plantas que são afinal domésticas. O que é filmado faz-nos pensar no nosso próprio contexto, nas diferenças e nas semelhanças entre as paisagens e os gestos que estão debaixo dos nossos olhos. Há depois poemas, vários poemas, de vários tempos e de vários lugares, de Ovídio a Heiner Muller, de Holderlin a Kavafis, passando por Michaux e Pessoa, que são lidos nas suas línguas originais.

Des musiques plus intimes talvez exista um pouco, na sua forma de narrativa que é estruturada pelos sucessivos dias de uma semana, um poema visual sobre a relação de um leitor com a poesia e por extensão com as línguas em que elas são escritas. É um filme muito breve, mas faz várias coisas. Uma delas é fazer-nos pensar que a poesia nas várias línguas em que é escrita e em que a lemos é uma forma de nostalgia pelos lugares, por diferentes países. Por isso, no início um dos excertos citado é de um poema de Borges, “Al idioma alemán,” e termina-se com um poema de Kaváfis “Desde as Nove.” Des Musiques Plus Intimes é neste sentido um estudo da forma como as línguas e os poemas expandem o nosso mundo e a nossa leitura da realidade. Por outro lado, cada poema é uma espécie de curta-metragem dentro desta curta-metragem e, um pouco à maneira dos rapsodos na antiguidade, as narrativas vão-se adicionando umas às outras, criando nexos de sentido entre si, num diálogo que cria uma espécie de narrativa cumulativa que nos faz pensar em coisas como o que quer dizer solidão e sentido. As palavras de outros, lidas nas línguas de outros, parecem consolar-me, lemos a determinado ponto.

Qualquer coisa neste curto filme imita a solidão do pensamento, as formas como fazemos sentido da realidade nas narrativas dispersas que vamos vivendo, confinados ou não, num olhar muito atento sobre a profundidade da linguagem, enquanto forma onde ao mesmo tempo cabem o exílio e os gestos que nos aproximam dos outros. Há na voz de Roberto de Salazar, cujo rosto nunca é visto por inteiro, qualquer coisa do anonimato dos aedos cujos nomes ficaram esquecidos. Para além de uma encenação do modo como uma biblioteca expande um universo pessoal, e para lá do que o filme tem de tributo a uma biblioteca pessoal, há uma dramatização das formas como os poemas com que vivemos criam sentidos que agem sobre as nossas biografias (é a certas palavras que voltamos e não a outras). Os poemas que são lidos, no entanto, resistem a uma fixação coerente no espaço, no tempo, ou numa identidade. Dizem e repetem, “sou daqui e não sou.”

Se isolássemos um dos muitos diálogos que os poemas lidos criam entre si, podíamos traçar uma linha entre o excerto do poema de Borges mencionado acima a “Gato que brincas na rua” de Fernando Pessoa a “Desde as Nove” de Kavafis. Todos os poemas são de alguma forma sobre identidade. O poema de Borges, de onde sai o verso que dá título ao filme, é em certo sentido sobre a relação entre identidade e a língua que se fala, sobre essa língua enquanto destino:

 

           Mi destino es la lengua castellana,
El bronce de Francisco de Quevedo,
           Pero em la lenta noche caminhada,
           Me exaltan otras músicas más íntimas.

           

Mas, na sequência, é-nos dito que essa música mais íntima é a da nostalgia pela língua alemã. É interessante pensar que o filme resiste a citar a famosa máxima de Pessoa, análoga, pelo menos em aparência e se tomada fora de contexto de “A minha pátria é a língua portuguesa”, para se fixar num poema de Pessoa que é sobre a impossibilidade da fixação numa identidade definida, “Gato que brincas na rua.” A comparação que parece ser com o gato, e que nesse sentido vem com um eco do Mestre Caeiro, termina com uma constatação de que a identidade resiste a fixações, é elusiva, tem, como o bronze de Francisco de Quevedo, a sua própria profundidade. Brincando um pouco, de alguma forma, é um pouco como se o plano do filme em que se filma o gato na varanda, enroscado dentro do vaso, revelasse uma coisa que talvez tivesse sido sugerida a Pessoa e que nos tinha escapado das muitas vezes que lemos este poema, que o próprio poema parece querer contrariar no contraste que encena entre o narrador e o gato, que o lado elusivo da identidade é afinal análogo ao carácter imperscrutável dos gatos, ainda que estes tenham os seus instintos gerais e sintam só o que sentem.  

“Desde as Nove” de Kaváfis, é um dos últimos poemas a ser lido. Datado de 1917 é um poema que se move da descrição de coisas interiores, a casa, o candeeiro aceso, a memória do prazer físico do corpo, para o exterior, para centros de cidades, cafés, teatros. É sobre um sujeito na paisagem e sobre a passagem do tempo por ele, sobre a sua vertiginosa aceleração, que é quase impercetível. Lido no contexto desta curta-metragem, torna-se talvez não tanto um poema um pouco sobre a fixação da identidade nas coisas, quanto sobre a permanência do que é exterior em nós, sobre o que a efemeridade dessas trocas com o exterior aguça na nossa percepção até chegar ao ponto, que é como um aviso, em que nos fala da nossa própria efemeridade no tempo.

Talvez a última revelação seja, como se diz nos últimos versos que ouvimos, entrecortados com o som e as imagens da chuva, saber o que já sabemos, mas Des Musiques Plus Intimes talvez sugira que, como os poemas que vivem connosco, é preciso enumerar estas coisas com cuidado.  


[1] Coligido em On Grief and Reason. Essays, Penguin, London, 1995.

A Partir de Um Provérbio Grego

A. E. Stallings em Like
(publicado também em Futures: Poetry of the Greek Crisis e aqui.)
Tradução de Tatiana Faia.

Ουδέν μονιμότερον του προσωρινού

Estamos aqui por enquanto, é o que respondo à pergunta –
É só por um par de anos, dissémos, faz doze anos.
Nada é mais permanente do que o temporário.

Jantamos sentados em cadeiras desdobráveis – baratas mas alegres.
Colámos com fita-cola o vidro da janela partido. A TV ainda não sintoniza.
Estamos aqui por enquanto, é o que respondo à pergunta.

Quando atravessámos a água, trouxémos só o que podíamos carregar,
Mas há sempre caixotes que não tornamos a abrir.
Nada é mais permanente do que o temporário.

Às vezes quando me sinto choramingas, propões uma teoria:
Nostalgia e gás lacrimogénio têm o mesmo travo acre.
Estamos aqui por enquanto, é o que respondo à pergunta –

Escondemos ossos no armário quando não temos tempo de os enterrar,
Enfiamos recibos em envelopes, arquivamos papéis em pilhas.
Nada é mais permanente do que o temporário.

Faz doze anos e ainda estamos a comer do de costume:
Deixámos para trás a loiça do enxoval, com receio que estalasse.
Estamos aqui por enquanto, é o que respondo à pergunta,
Mas nada é mais permanente do que o temporário.

espiões

The Spy who Came in from the Cold, John Le Carré/ Martin Ritt, 1963

The Spy who Came in from the Cold, John Le Carré/ Martin Ritt, 1963

às vezes chegam a meio da noite
e algum tempo mais tarde acabam por ser
fuzilados junto aos muros
que dividem as cidades
onde nós vivemos nas nossas apertadas
parcelas de amargura e felicidade
e que não se parecem nada com as vidas complicadas deles 

não conseguimos entender porque fazem este trabalho
mas às vezes conseguem voltar a casa
quando não voltam morrem anonimamente
e muito poucas pessoas dão pela sua falta
as suas famílias raramente sabem
o que fazem eles ao certo
ou o que lhes aconteceu exactamente
às vezes um ou outro extraviado
bate à porta de casa muitos anos mais tarde
pela calada da noite
e não fica por muito tempo
as suas mães quando envelhecem
sofrem de ainda mais melancolia
do que as mães dos exilados 

usam sempre nomes falsos
e dormem com mulheres casadas
que amam ou não amam
e nisso parecem-se mais connosco
queixam-se que é sempre um inferno
quando se apaixonam
mas apaixonam-se com mais perigo
do que nós e temos inveja deles por isso 

parece por vezes
que viveram sempre no nosso país
e falam a nossa língua sem sotaque
outras vezes não mentem sobre de onde vieram
explicam que isto é para que não se esqueçam
muito das histórias que têm de contar
quando precisam de mentir
a outros espiões que por vezes
precisam de recrutar
para cumprir as suas missões 

tornaram-se nossos amigos
porque sabem que somos
estrangeiros como eles
mas sentem uma certa satisfação
por saberem que são mais estrangeiros do que nós 

vivem em casas que nunca serão suas
e têm carros estacionados
em todas as garagens da cidade
porque nunca sabem quando é necessário fugir 

às vezes contam-nos que quando se apaixonam
de verdade precisam de deixar armas carregadas
em estações de metro ou de comboio
e as pessoas por quem se apaixonaram
acabam por ter de fugir
ao cair da noite em aviões privados 

são eles quem os transportam
debaixo do seu chapéu de chuva pela pista do aeroporto
ou têm de se manter discretamente ao longe
nas salas de espera ou nos baldios em redor dos hangares
para se certificarem que os amantes
conseguiram escapar no último minuto 

conhecem sempre as melhores janelas
de onde ver as vidas monótonas dos escritores
de onde espiar o crepúsculo depois de longas horas
observando gente que se move
por salas em esquemas
onde nada acontece
onde tudo acontece 

estão sempre num estado de hipervigilância
reparam em coisas nas quais nunca pensamos
e são perigosos porque sabem
como invadir a nossa privacidade
mesmo quando não precisam de alterar
magicamente a frequência do microfone
dos nossos telefones
para ouvir todas as nossas conversas
e ler todas as nossas mensagens secretas 

todos os seus papéis são falsos
nenhumas das suas roupas lhes pertencem
de vez em quando não podem aparecer
para beber café connosco
porque estão ocupados a ser interrogados
ou mesmo torturados
por espiões mais espertos do que eles
o que nos confessam ser duplamente irritante
porque se atrasam para o café
e porque às vezes se magoam gravemente
às vezes pedem-nos coisas bizarras
e pouco razoáveis

nunca nos falam do seu trabalho
nunca sentem a necessidade de explicar ao certo quem são
têm sempre as melhores histórias para contar
e contra nós sabem sempre como disparar
as perguntas a que nunca tínhamos pensado ter de responder

 

  

Oxford, 2 de Junho de 2021

Elogio da Dúvida - Recensão

Elogio da dúvida.jpg

«Os melhores despedem-se de toda a convicção,
Os piores vão plenos de apaixonada veemência

(Yeats, W.B., Poemas Escolhidos, tradução de Frederico Pereira, Relógio D’Água, 2017)

 

Em Elogio da Dúvida (Edições 70, tradução de Jorge Melícias, 2021/2016), Victoria Camps, Catalã, faz exatamente aquilo que está no título. Não se trata de retornar ao niilismo radical dos cínicos gregos (aliás, mais ficcional do que histórico), contrapeso a um racionalismo que sacudia excessivamente os hábitos da época. Mas de usar a razão para combater dogmas e disposições que usam em vão a palavra verdade. É por isso que Camps prefere Esménia a Antígona, aquela é sobretudo dubitativa, ponderada e reflexiva. É que não se trata da dúvida fingida de Descarte, mas da de Montaigne (o herói do livro).

Com tantos séculos de civilização, com tantos séculos de erros, continuamos a ansiar por verdades, e é por esta porta que entram, e se multiplicam, os fanatismos. É este o perigo da verdade, a sua condição de existência não permite a dissidência. Todos juntos, a pensar e a sentir a mesma coisa, ou se desdenha ou se combate o estrangeiro, duas formas de destruição da diferença. Camps usa A Vida de Brian, dos Monty Python, para exemplificar a vontade de eliminar o divergente.

As raízes do fanatismo estão na incapacidade de pensar criticamente, a partir daqui crescerá uma autossuficiência pronta a acreditar que fala em nome da verdade, o islamismo serve de paradigma à autora. Montaigne estava totalmente fora desta disposição, desconfiando, mais do que Descartes ou Espinosa, do poder da razão para chegar à verdade. Em consequência, nos Ensaios, e para evitar que se imponha, decrete a verdade (é bem isto que constitui os fanatismos), elogia repetidamente, numa linha aristotélica, a moderação. Que, aliás, considerava mais difícil de concretizar do que os extremismos: «O povo engana-se. É muito mais fácil andar pelas margens, onde os extremos servem de limite, de freio e de guia, do que pela via do meio, larga e aberta».

Transportando esta tese para um campo metafórico e socorrendo-se de El retorno de los chamanes de Víctor Lapuente, Camps confronta a figura do político xamã (faz grandes promessas, tem tendências revolucionárias e autocráticas, ataca aos adversários) com a do explorador (responde a problemas concretos, assume erros, corrige-se). Nos países nórdicos praticam-se mais as políticas exploratórias. É também aí que se vive nas virtudes sãs do relativismo e da auto-irrisão. No Sul, prefere-se, pelo contrário, a bazófia e as grandes palavras: justiça, paz, liberdade, democracia. Palavras que sem pensamento crítico parecem absolutos mágicos, intrínsecos ao politicamente correto. Como quando se escreve «democrática» no nome de um país, sabe-se imediatamente que é uma ditadura (República Democrática Alemã, República Popular Democrática da Coreia…).

            O Elogio da Dúvida é um livro para todos, inteligente e substancial, sem excessos de erudição ou uma linguagem enfeudada numa arena académica. E não tenham receio de, depois de o lerem, ficarem enredados em dúvidas intermináveis. Só se fica menos dogmáticos e mais preparado para relativizar o autocontentamento.

4 estrelas.