Partir a cabeça

Katerina GÓgou (talvez no filme Parangelia, 1980)

Katerina GÓgou (talvez no filme Parangelia, 1980)

Ocorre-me que há toda uma espécie de catástrofes que só nos podem acontecer em dias de semana se tirarmos um dia de férias ou praticarmos qualquer outra alteração da rotina. É um pensamento triste saber que só posso ser atropelada por um autocarro em Trafalgar Square às onze da manhã numa quarta-feira se tiver tirado um dia de férias. A rotina, com o seu ângulo cortante de mania letárgica, com as suas rígidas proposições prisionais (a dor mansa, como lhe chamou O’Neill, num poema sobre uma rotina que não pôde ser quebrada), está afinal concebida para que o nosso corpo se mantenha inteiro, estável, ainda que no mesmo sítio, ao abrigo de boa parte de imprevisíveis intempéries. Digamos então que a rotina pode anular o risco e a ansiedade e mitiga a intensidade dos corpos em trânsito. Neste sentido a rotina tem um papel vital em manter a estabilidade das ordens sociais em que vivemos. É por isso que, de vez em quando, é absolutamente necessário desconfiar dela com horror. E que ela nos mantenha perfeitamente seguros, é, claro, uma falácia. A única perspectiva em que as nossas vidas são previsíveis é em aparência, mas talvez as estranhemos mais quando saímos da rotina e, mesmo assim, talvez não as estranhemos tanto quanto é necessário.

Estou a pensar nisto porque estou a pensar na última vez em que parti a cabeça e estou a pensar na última vez em parti a cabeça por causa de um verso de Katerina Gógou que li há uns dias. O verso em que estou a pensar aparece no quarto poema de Três Cliques à Esquerda, um livro publicado pela primeira vez em 1978: “e segurarão as tuas mãos/ com amor e cuidado a minha cabeça/ prestes a desfazer-se em mil.”

Os livros às vezes estilhaçam completamente a nossa rotina. Podemos conviver com eles como se convive com um irmão difícil ou com um desconhecido que em três frases nos desarma. Lê-los pode ser como partir a cabeça. Três Cliques à Esquerda (estes três cliques à esquerda são uma referência ao processo de ajuste da mira de uma metralhadora) foi recentemente traduzido para português por José Luís Costa e vem numa bela edição da Barco Bêbado, com desenhos de Gonçalo Pena e uma breve e excelente introdução do tradutor. O volume é duplo e contém também traduções de Cancro, do poeta inglês Sean Bonney, pela mão de Miguel Cardoso. (O livro de Bonney é inspirado nos poemas de Gógou.)

Três Cliques à Esquerda seguido de Cancro, Barco Bêbado, Novembro de 2020.

Katerina Gógou (1940-1993) é uma actriz e poeta grega, autora de poemas violentamente políticos, intimamente ligados à geografia de Atenas, muitos deles passados no bairro de Exárchia, historicamente território de activismo da extrema esquerda, foco de resistência contra a ditadura dos coronéis. José Luís Costa diz no prefácio que é um dos bairros da Europa que terá maior concentração de livrarias por metro quadrado e isto é absolutamente verdade. Há também os editores de vão de escada, os bares, as tabernas de toda a espécie, os traficantes na praça central do bairro, o cinema ao ar livre em Valtetsiou, os pintores que nos vêm vender desenhos e postais quando paramos nos cafés, onde há conversa e conversa que nunca mais acaba. Há ainda uma colina que tem uma vista sobre Atenas que nos deixa sem fôlego, Strefí. E havia os emigrantes e os refugiados, mas este é o bairro onde recentemente o governo de Mitsotakis, um dos governos com uma das agendas mais sinistras da Europa hoje, levou a cabo a sua expulsão de edifícios devolutos onde, segundo a tradição em Exárchia, comunidades solidárias de integração começavam a florescer.
Foi neste bairro que Katerina Gógou viveu boa parte da vida. Os poemas de Gógou são poemas zangados que falam de activismo, pobreza, decadência, desemprego, da letargia inspirada pelos diferentes modos em que o nacionalismo se vai infiltrando de novo na vida dos gregos no período imediatamente a seguir à queda da ditadura, em 1974. Atravessando toda uma geografia da cidade, chegam a nós com uma energia furiosa que nunca desiste de nos interrogar: 

Eu cá os meus amigos são pássaros pretos
que andam de balancé em terraços de casas prestes a desabar
Exárkhia Patissíon Metaxourguío Mets,
Fazem o que calha.
Vendem livros de receitas e enciclopédias porta-a-porta
constroem estradas e ligam desertos
intérpretes em cabarés da Zínonos
revolucionários profissionais
que foram apanhados e lhes baixaram as calças
agora tomam comprimidos e álcool para dormir
mas os pesadelos não deixam.
Eu cá as minhas amigas são estendais
em terraços de casas velhas
Exárkhia Victoria Kukaki Guizi
Neles prenderam vocês milhões de molas de ferro
as vossas culpas, decisões saídas de reuniões, vestidos emprestados
queimaduras de cigarros estranhas enxaquecas
silêncios ameaçadores vaginites
apaixonam-se por homossexuais
dê-esse-tês o período que ainda não veio
o telefone o telefone o telefone
vidros partidos a ambulância ninguém.
Fazem o que calha.
Os meus amigos não param de viajar
Porque vocês não lhes deixaram nesga para respirar
Todos os meus amigos pintam com tinta preta
porque lhes deram cabo do vermelho vocês
escrevem num idioma de palavras de ordem
que o vosso só serve para lamber botas.
Os meus amigos são pássaros pretos e estendais
nas vossas mãos. No vosso pescoço.
Os meus amigos. 

Muitas coisas neste poema falam das consequências do horror deixado para trás por um regime autocrático acerca do qual se adivinha que não haverá uma reflexão histórica que não excluísse aqueles que foram vítimas da sua violência. Esta falta de reflexão histórica é de um modo ou outro persistente nas democracias da Europa do Sul. O poema fala então desse cliché que tristemente parece tornar os poemas mais úteis, no sentido de justificar a sua existência: fala daqueles cuja voz é marginalizada, ou se marginaliza como reacção à sua ostracização, os que foram torturados e abusados, a quem se fez constantemente sentir que ficaram sem escolhas. E chega ao fim da sua sequência lógica com um peso ameaçador e quase metafísico que lembra a lucidez da loucura dos finais das tragédias de Eurípides, fala de como estas pessoas não desaparecem e se tornam a má consciência de novas ordens sociais. E enquanto não insistirmos em falar sobre isto nas nossas sociedades democráticas continuaremos a ser facilmente polarizáveis por mensagens populistas. E o que a polarização mascara e ajuda a perpetuar são formas de alienação social e desigualdade. Não é preciso ser muito inteligente para dizer que o preço a pagar por isso são sociedades mais instáveis, democracias mais frágeis, lugares onde não se vive bem.

A cabeça de Katerina Gógou prestes a desfazer-se em mil pedaços faz-me pensar noutra cabeça de poeta, a de Apollinaire. Não é raro perfis dessa cabeça aparecerem nas capas dos seus livros. Um desses perfis aparece por exemplo numa cópia de Calligrammes, onde um dos meus versos favoritos diz que a beleza de estar vivo ultrapassa em muito a tristeza de ter de morrer. A cabeça de Apollinaire foi ferida por um estilhaço em 1916, durante a Primeira Guerra. A ligadura que tapa a ferida da trepanação não tem nada em comum com uma ligadura que aparece num poema de Kaváfis, escrito em Alexandria três anos mais tarde, sobre alguém que recebe a visita de um amante que aparece com um ombro ferido e ligado, uma ferida que se volta a abrir quando ele tenta tirar da estante algumas fotografias.

He said he’d hurt himself against a wall or had fallen down.
But there was probably some other reason
for the wounded, the bandaged shoulder.

Because of a rather abrupt gesture,
as he reached for a shelf to bring down
some photographs he wanted to look at,
the bandage came undone and a little blood ran.

 

(tradução de E. Keeley e P. Sherrard, poema completo aqui)

Este poema de Kaváfis termina como muitos dos seus poemas acabam, numa reminiscência erótica vista à distância de um passado que fica longe. Há, no entanto, aquilo que o poema não esclarece, que é a origem daquela ferida, o que talvez deixe os leitores de repente olhar de relance para um mundo de gente que viveu perigosamente, à margem, até para lá da marginalidade obviamente imposta por encontros homossexuais clandestinos numa cidade de periferia na viragem no primeiro quartel do século XX. Nada sabemos da relação de Kaváfis com esse mundo. O vermelho desse sangue, por outro lado, não é o mesmo vermelho da tinta com que os amigos de Gógou não podem escrever. No entanto, a marginalidade que ambos supõem tem qualquer coisa em comum. Apollinaire sabia qualquer coisa de marginalidade, pelo menos em parte porque foi em tempos interrogado por uma tentativa de roubo da Mona Lisa. O facto de ele ser estrangeiro parece que teve qualquer coisa a ver com isso.

A última vez que parti a cabeça foi em Madrid. Abriu-se um golpe grande até à nuca, que não parava de sangrar, e a princípio não consegui parar de rir porque achei que seria engraçado poder morrer de outra coisa qualquer quando estávamos todos obcecados com a pandemia. Na manhã seguinte, uma amiga viu o corte, desinfectou-o, pôs-lhe um penso. Estou a pensar nos meus amigos que não param de viajar. O que é que a marginalidade dos poemas difíceis, escritos por pessoas marginais, aquela que é o oposto da retórica, tem em comum com a resistência à letargia e à indiferença?

 Oxford, 24 de Outubro de 2021


Nota: Uma boa recensão às duas obras pode ser lida aqui.

Nota 2: Margarida Vale de Gato dedica a Katerina Gógou um poema no seu mais recente livro, Atirar para o Torto. Um excerto: “não é no campo que se muda o mundo/ disse, mas não te pedi, forrageiro/ cantor de amanhãs extraordinários/ um beijo grego de ressaca fria/ e uma terminação de caluda.”

Atenas, vista de Strefí, em Exárchia

Dois poemas de Antonio Delfini

Tradução: João Coles


Não te conheço
nem vou querer saber quem és
somente um candeeiro
nos dirá
do nosso encontro
um candeeiro que se apagará
um candeeiro que não dará mais luz
um candeeiro que um dia
não nos dirá
mais nada
esquecido
o nosso encontro.


Caluda caluda
que vem aí o poeta
deixemo-lo passar
falem baixo meninas
abram as janelas
com suavidade
Numa cidade
de trinta mil habitantes
em mil novecentos e trinta e dois
ainda há gente
que espera que o poeta
passe
com o seu passo mortiço
Esperam que ele passe
não por respeito
mas porque é tão curioso
ver um poeta
com um casaquinho
apertadinho apertadinho
Mesmo as raparigas
mais modernas
esquecem por um minuto
o alfa romeo...
para ver o poeta
e rir
rir tanto
daquele seu casaquinho
coitadinho
tão pequenino.

In Poesie della fine del mondo, Einaudi


Non ti conosco
non vorrò sapere chi sei
soltanto un lume
ci dirà
il nostro incontro
un lume che si spegnerà
un lume che non farà più luce
un lume che un giorno
non ci dirà
più niente
dimenticato
il nostro incontro.

Zitti zitti
che c’è il poeta
lasciamolo passare
fate piano ragazze
aprite le finestre
con dolcezza
In una città
di trentamila abitanti
nel millenovecentotrentadue
c’è ancora della gente
che aspetta il poeta
passare
col suo passo smorzato
Lo aspettano passare
non per rispetto
ma perché tanto curioso
vedere un poeta
col giacchetto
stretto stretto
Anche le ragazze
più avanzate
scordano per un minuto
l’alfa romeo…
per vedere il poeta
e ridere
ridere tanto
su quel suo giacchettino
poverino
tanto piccolino.

In Poesie della fine del mondo, Einaudi

Os sapatos

Natalia Ginzburg, numa fotografia de Leonardo Cendamo em que não está a usar sapatilhas.

Natalia Ginzburg, numa fotografia de Leonardo Cendamo em que não está a usar sapatilhas.

Os sapatos são quase uma colecção de boas e más ideias. São também a memória de por onde andaram, a interrogação acerca de onde ainda podem ir. Reparo que os meus sapatos são sobretudo de ténis. Não sei porquê. Gosto de sapatos de ténis e gosto de sapatos que, não sendo sapatos de ténis, se parecem com sapatos de ténis. Qualquer coisa nos sapatos de ténis é sobre conforto e desadequação, imaturidade e perpétuo movimento.

Pergunto-me com que sapatos se terá apanhado Dante naquele bosque no meio do caminho da vida. Pergunto-me isto porque um dia na apresentação de um livro ou num colóquio qualquer, lá pelos inícios da segunda juventude, fiquei sentada ao lado do Vasco Graça Moura e reparei que ele estava a usar um par de ténis brancos (eram de lona ou não? não me lembro). Acho que foi isso que materializou para mim a noção de que os ténis podiam ser objectos de intelectuais.

Tenho dois pares de sapatos literários favoritos, mas não são talvez os que se imagina. Um desses pares é o que é mencionado no início de Conversazione in Sicilia de Elio Vittorini, um livro sobre anos violentos em Itália, quando os fascistas tomaram o poder. Lemos, nas primeiras páginas, que o narrador não tinha vontade de procurar ou de falar com ninguém, que se esquecia da vida e que os seus sapatos se enchiam de água. Penso que os sapatos a encherem-se de água são símbolo do desconforto, da pesada incerteza – abstractos furores, como lhe chama o narrador –, que paira sobre o princípio do romance e que traduzem a parálise de um tempo de medo, sem direcção aparente. São talvez a prefiguração de um afogamento.

Os outros sapatos literários que admiro e me comovem são também italianos e vagamente do mesmo período. São mencionados no ensaio “Le Scarpe Rotte” de Natalia Ginzburg. Esse texto foi escrito em Roma, no Outono de 1945, e está coligido em Le Picolle Virtù. Eis o primeiro parágrafo:

Io ho le scarpe rotte e l'amica con la quale vivo in questo momento ha le scarpe rotte anche lei. Stando insieme parliamo spesso di scarpe. Se le parlo del tempo in cui sarò una vecchia scrittrice famosa, lei subito mi chiede: «Che scarpe avrai?» Allora le dico che avrò delle scarpe di camoscio verde, con una gran fibbia d'oro da un lato. 

Este é um texto típico dos temas e do estilo de Natalia Ginzburg. As personagens são ao mesmo tempo melancólicas e divertidas (como ela própria dizia que as suas personagens eram sempre). Fala-se de sapatos para falar de hábitos, de família (os sapatos de família são sólidos e sãos), para caracterizar a escassez e a pobreza geradas pela guerra, para falar de cuidado e de amizade. Na descrição da degradação e persistência dos sapatos que as duas mulheres usam há uma metáfora de sobrevivência, nem assim tão bem escondida, que no fim do ensaio se concretiza na forma como Ginzburg acaba a imaginar que tipo de sapatos os filhos dela hão-de usar.

Este tipo de descrição, que se demora nos pormenores exteriores e que apenas indirectamente se torna caracterização psicológica, é outra marca do estilo de Ginzburg. As suas descrições mantêm sempre um afastamento objectivo, uma distância onde se vão acumulando e juntando coisas até que incisivamente se revela algum pormenor agudo e inescapável sobre aquilo que ela está a descrever, qualquer coisa que emerge como uma verdade necessária – isto vê-se, por exemplo, na descrição minuciosa das várias expressões do léxico com que o pai fala com os filhos em Léxico Familiar ou nas digressões existencialistas com que Cenzo Rena descreve as outras personagens em Todos os Nossos Ontens.

Esta técnica de acumulação às vezes passa a método para nos deixar entender uma personagem vista de todos os ângulos possíveis. Isto acontece, por exemplo, com Alessandro Manzoni, em A Família Manzoni. O escritor de I Promessi Sposi é uma figura tão imensa que Natalia Ginzburg só o consegue abarcar através da descrição de todas as personagens que o rodearam: pai, mãe, filhos, netos, genros,... e mesmo assim temos a impressão que nunca chegamos a entender Alessandro Manzoni.

Esta caracterização objectiva e cumulativa, tensa, aparece de um modo muito comovente na descrição de Cesare Pavese (de quem ela contava que uma vez ele lhe disse: “pára de ter filhos e põe-te mas é a escrever”) e do marido, Gabriele Baldini, nos ensaios “Rittrato d’un amico” e “Lui e Io,” respectivamente, ambos coligidos em Le Picolle Virtù.

Sobre Gabriele Baldini, em “Lui e Io,” Natalia Ginzburg nota que ele raramente comprava sapatos, embora tivesse um número gigante de camisas e gravatas. Diverte-me esta observação minuciosa, quase tanto quanto outra, que aparece noutro ensaio no mesmo livro, sobre Inglaterra, em que ela diz que os sapatos que se veem nas montras das sapatarias londrinas fazem mal aos pés só de olharmos para eles. Tento lembrar-me dos primeiros sapatos que comprei em Inglaterra e se eram desconfortáveis, mas do que me lembro melhor nesse ensaio é daquela frase, de uma certeza que me perturba, em que Natalia Ginzburg escreve que Inglaterra é um país que não muda as pessoas, que elas se tornam mais o que são, ou permanecem as mesmas. Penso que isto não é verdade, ou que entra noutra discussão, que me aborrece um pouco, sobre se alguém pode mudar de facto ou não. Eu creio que sim e fica implícito que Natalia Ginzburg também, exceptuando que o que as mudaria não seria Inglaterra.

Suspeito que os primeiros sapatos que comprei em Inglaterra não eram nada desconfortáveis, porque penso que talvez tenham sido um par de Camper que duraram pouco, ou menos do que eu tinha esperado, arruinados pela chuva inglesa e por umas intermináveis caminhadas numa Paris igualmente chuvosa. Não sei que sapatos lhes sucederam. Não sei se foi aí que entraram em cena umas botas de couro, com ar de sapatilhas, leves, aparentemente não muito resistentes, fabricadas no Porto, mas compradas algures numa tarde de dilúvio em Londres. Não sei bem, mas quase que duraram para sempre, e entristece-me que estejam agora muito arruinadas. Houve uma vez em que um sapateiro inglês as declarou um caso perdido, numa altura em que quis substituir-lhes as solas demasiado gastas em vez de as deitar fora. No entanto, um sapateiro megalomaníaco de Lisboa tornou a trazê-las à vida.

As ideias erradas que tenho sobre a capacidade de resistência dos sapatos aos dilúvios e às longas caminhadas dão sinal da má-fé que mantenho perante a aceitação dos limites naturais das coisas, e talvez denunciem um certo espírito lírico, ao mesmo tempo melancólico e cómico, quanto às possibilidades deixadas em aberto por todos os caminhos que serão percorridos por sapatos que ainda estão por vir.

 

Oxford, 11 de Outubro de 2021

Leonard Cohen, fotografado por Dominique Isserman nos Jardins du Luxemburgo, talvez em 1981 ou 1984, a acender um fósforo na sola dA Bota.

Leonard Cohen, fotografado por Dominique Isserman nos Jardins du Luxemburgo, talvez em 1981 ou 1984, a acender um fósforo na sola dA Bota.

Sísifo para lá da montanha

Mito de Sísifo.jpg

Em 1942, Camus publica o Mito de Sísifo (Le Mythe de Sisyphe). Fascina-o sobretudo a descida da montanha, depois de Sísifo ter sido vencido, uma e outra vez, perto de chegar com o rochedo ao topo (que provavelmente não existe). Foi esse o castigo dos deuses por tê-los desafiado. Daí que no final do ensaio diga a célebre, e celebrada, frase: «É preciso imaginar Sísifo feliz» (Il faut imaginer Sisyphe heureux). Porque no retorno incessante ao ponto de partida, Sísifo torna-se «superior ao seu destino». «Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. O seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua coisa». Assumindo o seu destino, a sua fatalidade, Sísifo torna-se superior aos deuses, a própria luta chega para preencher o coração do homem, trazendo, paradoxalmente, sentido ao absurdo da existência. O absurdo é um dos pilares do existencialismo, representado por Camus, Sartre, Ionesco, Beckett, Genet e, entre outros, embora à sua maneira, Vergílio Ferreira.

Este último, por enquanto esquecido, escreve: «Sísifo não é ridículo, nem cobarde, nem estúpido, porque é grande na sua miséria, porque é corajoso em não desistir, porque é clarividente e sabe que o alto da montanha fica sempre para lá do alto da montanha.» («Da Fenomenologia a Sartre») Portanto, não é tanto o reconhecimento de uma fatalidade (universal talvez, encontramos facilmente o eterno retorno nas nossas vidas) que mitiga o absurdo da existência, mas um pensar que nos eleva acima do destino. O pensar pára [insisto no acento] o movimento, exclui-nos do movimento, permite-nos ver ao mesmo tempo a nossa fatalidade e para lá dela. E quando, em Alegria Breve, Vergílio escreve, dando voz a Ema (é relevante que seja uma personagem feminina), que «Todos os caminhos são bons, desde que sejam caminhos», elucida-nos sobre sermos lançados para caminhos que não desenhamos ou escolhemos, mas que depois tornamos caminhos nossos ao vermos para lá deles.

Noutros termos: ninguém se safa da vidinha, cheia de eternos retornos, mas se ao lamento acrescentarmos «há vida na vidinha» (uma forma de estabelecermos um «para lá», ou, com Vergílio, «A vida está nel[a] como a brasa sob as cinzas» — «Da fenomenologia a Sartre»), então viveremos numa tragédia decente, prontos para múltiplas felicidades e infelicidades.

Nadar

 

Para Antonella Di Marzio,
que nem nunca me disse se gosta de nadar.

Há aquele poema da Sophia em que ela diz que quando morrer voltará para viver todos os momentos que não viveu junto do mar. Penso também que, se desse, queria voltar para nadar em todas as extensões de mar em que não vou conseguir nadar. É um pouco o mesmo dos livros que não vai dar para ler. O filósofo alemão Lessing dizia que a diferença entre a pintura e a poesia é que uma se desdobra no tempo e a outra no espaço, mas de cara na linha de água tenho sempre a impressão que nadar é alguma espécie de soma das duas coisas: tempo e espaço claramente desaparecem um no outro à medida que os braços e as pernas se movem na água. Cresci longe do mar e comecei a aprender a nadar cedo, numa piscina construída dentro de um pinhal, por onde se chegava de bicicleta, por uma estrada de terra batida que era mal iluminada e, por isso, era preciso ter especial cuidado no inverno. Havia um instrutor que era um oficial da marinha, um homem alto e bem-parecido e por quem as minhas quatro ou cinco colegas se apaixonaram todas na viragem da infância para a adolescência. Eu não, porque tinha parado de nadar. A adolescente chata que eu fui andava de nariz escondido dentro dos livros de latim. Esqueci-me de nadar e, consequentemente, da vida algures entre a primeira e a quinta declinação e os exercícios de tradução das Filípicas. Não me lembro bem se os romanos, mortos há séculos, mas para quem o mar era tão importante, só me fizeram voltar a pensar em nadar quando cheguei àquela imagem no De Rerum Natura de Lucrécio:

Suave, mari magno turbantibus aequora ventis,
e terra magnum alterius spectare laborem;
non quia vexari quemquamst iucunda voluptas,
sed quibus ipse malis careas quia cernere suave est.

(“Pleasant it is, when on the great sea the winds trouble the waters, to gaze from shore upon another’s great tribulation: not because any man’s troubles are a delectable joy, but because to perceive what ills you are free from yourself is pleasant,” na tradução, um pouco tosca mas inteligente (não me convence o pleasant por suave), de W.H.D. Rouse na Loeb.)

O equipamento de natação passou a andar dentro da mochila talvez às quartas ou às sextas-feiras, não me lembro bem, quando o terror das provas globais no primeiro ano da secundária passou. O equipamento viajava pouco mais de cem quilómetros por dia entre o liceu e a piscina, para que eu pudesse nadar um pouco já de noite, fora da hora da minha turma normal. E não me lembro de quase nada daquelas sessões de natação, excetuando o edifício da piscina aceso entre os pinheiros e a libertação do corpo no mergulho da prancha, aqueles poucos segundos de voo, a pressa em entrar dentro de água e em começar a mexer-me porque era preciso aquecer. Lembro-me do falhanço espetacular de entrar de chapão, um erro que nem sempre se evita. Quando mais tarde vim a ler As Memórias de Adriano da Marguerite Yourcenar achei que o ritual daquele mergulho tinha de ter qualquer coisa que ver com uma das últimas frases do romance, quando se diz que é preciso entrar na morte de olhos abertos; e só muitos anos mais tarde, a destoar entre um bando de turistas americanos diante do túmulo do mergulhador em Paestum, vi claramente a alegria simples de um mergulho de colunas em esquema para uma água esquemática. A alegria do último mergulho como coisa banal no mundo dos vivos e metáfora de entrada no mundo dos mortos.

Túmulo do Mergulhador, Paestum, ca. 470 a.C.

Túmulo do Mergulhador, Paestum, ca. 470 a.C.

Havia nadar nas piscinas da Cidade Universitária durante o curso e no Atlântico enquanto vivi em Portugal. Havia as diferenças entre nadar nas praias de Lisboa e do Porto. Há muito tempo que não entro no mar em Portugal. Não gosto de nadar no Atlântico. É demasiado frio, mas tenho alucinado noutras piscinas e noutros mares as ondas e as correntes, a beleza cortante de nadar num estado de alerta que é uma resposta consciente a sentir à nossa volta o campo de forças de um elemento que nos ultrapassa completamente. A última vez que senti algo como isto foi numa praia muito recôndita do norte da Grécia, numa tarde em que no espaço de poucos minutos, de um céu carregado que li mal, uma tempestade de granizo desabou sobre o mar e uma força imensa podia facilmente ter-nos puxado para longe da costa se não tivéssemos sido rápidos a sair. É importante escapar a tempo ao que nos quer destruir, acho, uma coisa que se aprende cedo com a natação e também dá jeito para outras situações. Em Inglaterra as piscinas fizeram-me falta durante o confinamento e durante muitos meses vi gente nadar diariamente no Tamisa, gente indiferente a saber que esses braços de rio são zonas poluídas, com depósitos de resíduos industriais. Via-os entrar e sair da água nas cancelas que estão construídas para os remadores e penso que a solidão dos nadadores é a mesma dos escritores. Não sei que amigo é que me contou que Anne Carson tem sempre de nadar, onde quer que esteja.

Em Oxford, antes do mundo confinado, costumava nadar na piscina da universidade, num sítio que se chama Iffley Road, a que me apeguei porque também lá chegava de bicicleta, mas não por uma estrada de terra batida, e onde filas de sapatos se empilhavam em bancos à entrada porque é proibido entrar calçado. Às horas a que eu aparecia era eu e um grupo de cinco velhinhas que no balneário cantavam em uníssono no fim do treino, em alguma língua que me parecia mandarim, gloriosamente alto e (um pouco menos gloriosamente) nuas, olhando-me com a pena e o desdém que se reserva aos intrusos mais inconvenientes. Em três ou quatro anos de nadarmos juntas, isto é, em faixas adjacentes, nunca trocámos uma palavra. Não sei porquê. Às vezes via-as na sua disciplina cantante e vinha-me à mente uma fotografia de Cartier-Bresson que vi uma vez em Paris, tirada na China, que mostrava estudantes da cidade de Beijing a construírem a piscina da Universidade, a baldes e força de braços numa era para lá de industrializada. Gosto de pensar que tenho nadado em piscinas isentas de crueldade. Às vezes entramos numa piscina e é o que basta para ficarmos sozinhos com a persistência da memória, como sugerem as cenas em que se vê Juliette Binoche a nadar no Bleu de Kieslowski. (Considerações sobre outras piscinas cinematográficas, nomeadamente as que aparecem em La Piscine de Jacques Deray e A Bigger Splash de Luca Guadagnino, vão ficar para crónicas de outra estação porque os leitores da Enfermaria 6 são de todas as idades e porque, infelizmente, o outono inglês é previsivelmente vitoriano.)

Henri Cartier-Bresson, Beijing, 1958

Henri Cartier-Bresson, Beijing, 1958

Às vezes antes de entrar no edifício da piscina em Iffley, via, das janelas, o cronómetro aceso sobre os tanques, com a inscrição Poseidon acima, e lembrava-me do título do livro da Golgona Anghel, Nadar na Piscina dos Pequenos. Em Iffley não há piscina dos pequenos, onde cresci sim, e costumava jogar uma espécie de voleibol aquático com as minhas irmãs, a irmã mais nova ficava no meio, para gáudio das mais velhas e às vezes penso que íamos jogar para aquela piscina só para encenarmos imperfeitamente aquele fresco da Villa Romana del Casale, na Sicília, onde se vê raparigas em biquíni a jogar com uma bola.
Mas para onde terão as velhotas que cantavam ido? Para onde os estudantes que construíram a piscina a braços? Onde estarão eles a nadar agora?

Gostei de nadar no Pacífico, que por qualquer coisa me lembra o Mediterrâneo, mas acho que as minhas extensões preferidas de mar ficam nas ilhas gregas, em Paros e Naxos, em Cefalónia (onde às vezes a água é tão clara que os barcos fazem sombra no mar, mas cujas correntes podem ser tão traiçoeiras que nos lembramos que são estas as costas de Ulisses), em Creta e Rodes e na pequena ilha de Symi, numa aldeia que se chama Nimborio, onde uma vez, depois de beber muito ouzo, uma velhota me contou que quando era mais jovem costumava sair de noite com um pequeno barco que era do marido, para nadar sozinha e depois lançar as redes ao mar; e houve um ano em que apanhou tanto peixe que todos os pescadores em volta lhe vieram pedir conselho. É raro nadar de noite, mas às vezes gosto de ver o sol nascer sobre o mar enquanto nado.

Depois da tempestade de granizo lá naquela praia do norte ter passado, voltei para caminhar junto ao mar com um par de amigos e durante alguns quilómetros tivemos a impressão que nada tinha acontecido. Depois começaram a aparecer as árvores derrubadas e os barcos arrastados para a costa e na vila mais próxima um iate tinha sido lançado para a praia e um minúsculo barco tentava puxá-lo de novo para o mar. Ficámos ao longe, de cocktails na mão, comprados num dos últimos bares abertos e tentei falar de Lucrécio enquanto víamos o barco ser puxado pelo piloto maníaco no seu barquinho, que dentro da cabine devia estar a amaldiçoar a hora em que atendeu aquele telefonema; e achámos que era impossível até que qualquer coisa se desprendeu e de repente as velas se ergueram e todo o barco virado de novo para cima voltou a flutuar no mar, para aplauso geral na praia.  

Às vezes alucino os fantasmas de gente que vi nadar e nunca mais tornarei a ver. Alucino os barcos, os pontões, as pranchas que foram seus e de onde os vi mergulhar. Regressam os seus gestos, imagens às vezes submersas no lusco-fusco da lembrança, às vezes tão claras como fotografias. Lembro-me de praias, de cores e modas de fatos de banho, dos corpos nas diferentes estações das suas vidas, do ritmo das suas braçadas, das extensões que percorriam, por onde exactamente, até onde o meu olhar os perderia de vista. Lembro-me às vezes da luz a que os vi e não os tornarei a ver. Tenho nostalgia de ver certas pessoas nadar. E deve ser qualquer coisa dessa alegria que volta à memória do meu corpo sempre que posso voltar a nadar.

Oxford, 25 e 26 de Setembro de 2021

Luca Zingaretti em Inspetor Montalbano, nadando a cada manhã para refletir nas suas investigações.

Luca Zingaretti em Inspetor Montalbano, nadando a cada manhã para refletir nas suas investigações.

Pontão de Agios Pavlos, Lindos, Rodes, 2020

Pontão de Agios Pavlos, Lindos, Rodes, 2020