Eduardo Quina, Consanguíneo - nota de leitura

O último livro de poesia de Eduardo Quina, Consanguíneo, Officium Lectionis Edições, 2021, traz o esplendor de uma poesia que talvez ainda não se tivesse revelado totalmente. É como se finalmente o rio, ou rios, chegasse ao delta e aí justificasse todo o caminho, cheio de imprevistos e de tentativas, precedente. Não se trata, porém, de um «esplendor» qualitativo, uso o termo para traduzir uma emergência avassaladora. Resultado de um esbatimento da tensão antagónica entre as pulsões de vida e morte, agora desaguamos numa única grande, incalculável economia do thanatos, percorrida por uma violência autoengendrada.

Para quem acompanha o exercício poético (movimento de um corpo pleno) de Eduardo Quina, verá em Consanguíneo (uma irmandade de sangue trágica: «o processo ôntico e fúnebre / da consanguinidade») o extremar de um horizonte de sentido (mais total do que parcelar, mais de arrebatamento do que de discernimento) que habitava já os seus poemas anteriores. A linguagem (clara/obscura), o bem/mal (metafísicos, sobretudo), deus (presente/ausente), a redenção, o desespero, a dor, a morte, várias formas de abismo, um pouco de luz (inesperada e limitada, avarenta e fugidia).

Consanguíneo é um manifesto que ilumina a escuridão (mas a claridade gasta-se logo à entrada das trevas e o excesso de lucidez, que poderia alinhavar artimanhas ontológicas, queima), rastos da luz que presidiram ao começo do mundo, no qual o divino palavroso fez tudo mal feito, «afinal somos o projecto falhado dos deuses», e depois, com a nossa cumplicidade, remediou a incompetência com um tecido de ilusões, um deus que «descansa de todas as mortes» (uma soberania divida fundada no bem seria capaz de, imediatamente, originar uma vontade geral boa). O ofício do poeta (porventura anódino: «o sacrifício inútil da poesia»; «a poesia nada pode»; «a poesia é uma farsa.»…)  é, sem qualquer convicção épica, traduzir em palavras, com estas exatas palavras, a «nossa dor insuportável e definitiva». O que seria da dor se as palavras, aparentemente redundantes, não lhe dessem voz? Se o livro insiste na irrealidade da redenção, o que seria de nós se o poeta não abrisse, também ele, a caixa de Pandora, e nos dissesse que mais fragmentos de niilismo se soltaram logo no primeiro gesto de curiosidade perverso de… talvez deus? Nos dissesse isso, e desta forma — como quem angustiado por uma espada de Dâmocles conhece, finalmente, o desfecho sangrento — nos desiludisse: as coisas são assim, se aguentares mereces ver-te ao espelho sem te enojares. Mas o teste é exigente: «crianças brincam / na dor imensa / de serem mortais. / deus não lhes fala: / é o enigma da cegueira.» ou

«a criança espera pacientemente os predadores
 construindo através de pequenas linhas
as gaiolas
onde os intermináveis pássaros negros
esperam resignadamente
as vozes e os vultos da fome

[uma simetria da doença de deus]»

Quando olhamos para a composição do livro, percebemos, desde logo pelos capítulos — «Morrer ou Enlouquecer»; «O Jogo da Cabra Cega»; «Natureza Morta»; «Maligno»; «Ausência»; «Labirinto»; «Cegueira»; «Epitáfio» —, que colocar O Triunfo da Morte de Pieter Bruegel na capa não foi um acaso estético. Consanguíneo é uma epístola, talvez laica, sobre o morrer e a via despida, desgraçada que nos conduz até lá. As positividades são demasiado dolorosas (encenadas num teatro da crueldade com mães e filhos sem afetos, o cordão umbilical rasgado a golpes de desespero, a dor em cada segundo de vida, um deus da facécia e da impotência, uma linguagem que esfaqueia os bem-intencionados) para que uma negatividade, à maneira da fenomenologia sartriana, traga o que quer que seja de bom (é que «os pulmões são feridos pela respiração»). Talvez aqui haja essa radicalidade do mal que Hannah Arendt quis, numa estratégia anti-messiânica que se percebe, suprimir. Um mal metafísico que impede, por isso mesmo, a redenção:

«tens o corpo tombado sobre as flores:
O eco de uma outra língua
Esquecida no passado

Quando cristo chegou estavas morto:
O rosto desfigurado pela verdade

[depois as palavras da ressurreição:
Estavas novamente pronto para o sofrimento]

Eduardo Quina conclui o livro com um epitáfio, a última estrofe diz: «precisava tanto que não tivesses morrido». Se lançarmos este apelo noutra direção talvez acabemos por apanhar um «precisamos todos de viver», transformando o abismo do abandono num amor fati que exulte com a nossa condenação à liberdade. Se o olhar de deus é inútil, se a ideologia se tornou irremediavelmente inconsequente depois da dissolução do eu, então, respondendo ao poeta, somos nós que devemos conduzir esta cegueira, alimentando-nos, como diz Eduardo Quina, da «brutalidade do real». Sabendo, contudo, que «estamos sós diante da nossa solidão». Mas, numa resignação estoica cruzada com a ontologia teológica leibniziana, «Talvez este seja o melhor dos mundos possíveis», por isso: «fecho a porta e assisto ao milagre do fogo». (Re)citando uma ideia de Rui Chafes, que Eduardo Quina põe em epígrafe no capítulo sobre o Maligno, «A beleza é impossível sem as marcas da morte». Certo, mas redobrando de intensidade (o que não desautoriza totalmente algumas paragens redentoras, por exemplo no poema da página 175), Eduardo Quina escreve: «se ao menos a morte te aliviasse da dor.»

"O escudo de Aquiles" de W. H. Auden

Tradução de Tatiana Faia

Ela procurou por cima do ombro dele
     Pelas vinhas e oliveiras,
Pelas bem-governadas cidades de mármore,
     E naus em mares bravios,
Mas ali no metal reluzente
     As mãos dele puseram em vez disso
Um ermo artificial
     E um céu de chumbo. 

Uma planície sem feições, despojada e castanha,
     Nem uma folha de relva, nem um sinal de vizinhança,
Nada que comer e lugar nenhum onde sentar,
     Porém, congregada no vazio, permaneceu
Uma incompreensível multidão,
     Um milhão de olhos, um milhão de botas alinhadas,
Inexpressiva, à espera de um sinal. 

Do ar uma voz sem rosto
     Comprovou por estatísticas que alguma causa era a justa
Em tons tão secos e planos como o lugar:
     Ninguém foi aplaudido e nada se discutiu;
Coluna a coluna numa nuvem de pó
     Marcharam para longe sustentando uma certeza
Cuja lógica os trouxe, mais tarde noutro lugar, à tristeza. 

Ela procurou por cima do ombro dele
     Piedades rituais,
Vitelas coroadas de brancas grinaldas,
     Libação e sacrifício,
Mas ali no metal reluzente
     Onde devia ter ficado o altar,
Ela viu à luz trémula da forja dele
     Uma cena bem diferente.  

Arame farpado cercava um ponto arbitrário
     Onde oficiais entediados se recostavam (um fez uma piada)
E as sentinelas suavam, porque o dia era quente:
     Uma multidão de gente normal e decente
     Vigiava de fora e não se moveu nem falou
Enquanto três pálidas figuras foram trazidas adiante e amarradas
A três estacas enterradas ao alto no chão. 

A matéria e a majestade deste mundo, tudo
     Cujo peso conta e sempre pesa o mesmo,
Estava entregue às mãos de outros; eram pequenos eles
     E não esperavam ajuda nem ela veio:
     O que os seus inimigos gostavam de fazer foi feito, a sua vergonha
Era tudo o que os piores queriam; perderam o seu orgulho
E morreram como homens antes da morte dos seus corpos.

Ela procurou por cima do ombro dele
     Os atletas nos seus jogos
Homens e mulheres numa dança
     Movendo os doces membros
Rápido, mais rápido, à música,
     Mas ali no escudo reluzente
As suas mãos não puseram pista de dança nenhuma
     Mas um campo estrangulado de ervas-daninhas.

Um garoto esfarrapado, sem destino e só,
     Vagava naquele vácuo; um pássaro
Voou para o alto e escapou à sua pedrada certeira:
     Que violassem as raparigas, que dois rapazes apunhalassem um terceiro,
     Eram axiomas para ele, que nunca tinha ouvido falar
De mundo nenhum onde uma promessa se cumprisse
Ou em que alguém chorasse porque outro chorasse.   

O armeiro de finos lábios,
     Hefesto, coxeou para longe;
Tétis dos seios reluzentes
     Gritou de desespero
Ao ver o que o deus forjara
     Para agradar ao seu filho, o forte
o de coração de ferro o assassino de homens Aquiles
     Que não ia viver muito.

 

1952 (primeira reedição em 1955 em The Shield of Achilles)

Desconstruir / Construir

«Uma herança lega‑nos sempre subrepticiamente formas de a interpretar. Ela impõe‑se a priori à interpretação que produzimos, transformando-nos quase sempre, numa certa medida, e até um ponto difícil de estancar, em repetidores.» (Jacques Derrida, Du droit à la philosophie, Paris: Galilée, 1990).  Em resposta, os críticos da marginalidade pós-moderna — e da sua aposta, bem nietzschiana, em que tudo é interpretação — acusaram várias vezes Derrida de relativista estéril (sobretudo Jürgen Habermas e John Searl). É que Derrida multiplicou os textos de desconstrução das velhas tradições filosóficas, textos sedutores, ainda por cima. O exemplo paradigmático é Glas (Paris: Galillé, 1974), onde pôs lado a lado, na mesma folha, o metafísico Hegel e o mestre da violência metafórica que foi Jean Genet. Tudo em estado puro, sem qualquer nota de rodapé ou citação bibliográfica. Os dois campos discursivos afetam-se mutuamente no espaço que partilham (a folha), manifestam uma heterologia de corpo a corpo, e dessa forma desenvolvem uma (de)formação que os ultrapassa individualmente. Este jogo diferencial entre discursividades heterogéneas faz emergir a própria desconstrução, i.e., o que no interior de cada texto tem a força de o arruinar enquanto depositário de um sentido homológico; mas, ao mesmo tempo, também o projeta para outras possibilidades de sentido. Marca-se, assim, a crise do discurso filosófico logocentrado, numa crítica sem complacência às habituais grelhas discursivas. Para combater a acusação de leviandade filosófica, de falta de rigor ou capacidade sistematizadora, repetiu algumas vezes o que, primeiramente, escreveu no posfácio a Limited Inc («Toward An Ethic of Discussion»), onde deixa claro que nunca encorajou a leitura caprichosa, o dizer «não importa o quê». Por exemplo, uma boa leitura de Rousseau exige, segundo ele, a compreensão progressiva da língua francesa e o conhecimento do corpus rousseauniano e contextos que o estabeleceram e estabelecem.

Mas levado por este jogo de ordem e excesso («Il faut l’ordre e il faut l’excès», Georges Bataille), de determinismo cultural, talvez antropológico, e de desconstrução libertária e provocadora, quero, como quem quer, a medo, a sua parte do saque, pensar um pouco ao lado, exercer, talvez, uma pequena desconstrução sobre Derrida. Sigo em parte Michel Foucault e recupero algumas ideias dos últimos anos, presentes também aqui na Enfermaria 6.

É possível tornarmo-nos estranhos a nós, interpretar de forma livre não se funda, ao contrário do que muitos dizem, no aprofundamento da soberania do Eu. O Eu é sempre um produto histórico, um patchwork, com camadas de preconceitos, da época, da cultura, ou culturas, dominante (ou, sendo minoritária, com suficiente força para desenhar sentidos próprios). Por isso, na procura quase insana de uma verdade universal, Descartes, e depois a fenomenologia husserliana, pretendia que o Cogito fosse estritamente racional, sem contexto, uma fábrica divina de algoritmos autossustentados. Tratava-se, pois, de desencarnar o homem, de o des-historizar (compreende-se o anti-cartesianismo de Ortega e Gasset quando diz «Eu sou eu e a minha circunstância»), de o purificar, epistemologicamente, primeiro, e depois, talvez, ontologicamente. Seria um ser sem as «paixões da alma».

Regressemos ao Eu como produto da situação, de um processo de subjetivação (o «para-si» de O Ser e o Nada de Sartre) alimentado pelo exterior. Sabendo isso, como tornar nossa parte das interpretações, evitando reeditar constantemente o que já se pensou e disse? Há exemplos que podemos seguir, emulando-os mais do que imitando-os. Indico o de Michel Foucault e o seu trabalho metódico para se tornar outro, pensar de outra forma (como Nietzsche queria que cada um fosse, uma força permanente de autossuperação). Na década de 60 do séc. xx escreveu sobretudo sobre literatura (Raymond Roussel, Georges Bataille e Maurice Blanchot), a morte do autor e do próprio homem (Les Mots et les Choses). Depois, consagrou-se à questão do poder (Surveiller et punir e Histoire de la sexualitéLa volonté de savoir). Na década de 80, regressou ao sujeito a partir da Grécia Antiga, (L’usage des plaisirs, Le souci de soit e vários cursos no Collège de France); mas não o fez para glorificar os gregos ou esboçar um manual de autoajuda, antes para que o sujeito se reinventasse, porque estudá-los permitia desenvolver uma estranheza em relação a nós.

Ora, este «estranhamento» é a melhor forma de nos libertarmos dos preconceitos que conduzem as nossas interpretações. Trata-se, pois, de nos desfazermos do que somos, reavivar o nosso processo de subjetivação, superar-nos, advir outros, reconfigurar as mil-folhas que enquadram a nossa visão do mundo, estimulando um pensamento livre (uma liberdade em situação, nada que ver com o cogito cartesiano ou a subjetividade transcendental kantiana). Desejarmos ser mais margens do que uma centralidade ruminante e redundante. É que não somos somente um labirinto de segredos ou um catálogo de categorias, mas sobretudo exterior, exteriorização, o íntimo foi abusivamente sobrevalorizado (Freud, Estruturalismo…). A vida é um campo dúctil, modificável, a ética de Foucault, o ethos fabricado de cada um, seria o resultado de um trabalho pessoal sobre si («techniques de soi»), um esforço de transformação, de apropriação de novas formas. Pensar é um artesanato que vai compondo cada indivíduo, na sua relação com os outros e com o mundo, ou melhor, com a Terra.

Mas não haverá aqui mais do mesmo? Esse exercício de libertação não será ainda uma astúcia, mais subtil contudo, das várias instâncias de condicionamento? Talvez, mas vale a pena arriscar, pormo-nos a andar de lado, obliterar o que somos, desconstruir as caixas onde nos vão, e nos vamos, colocando.

Que o horizonte de expetativas futuro seja o de sermos heterodoxos canonizados.

 

Anne Carson

Anne Carson

O percurso de Anne Carson enquanto escritora é bastante difícil de classificar. As designações mais óbvias poderiam descrevê-la como poeta, tradutora e ensaísta mas estas três práticas contagiam-se umas às outras mais ou menos constantemente. Por exemplo, em 2009, Anne Carson publicou uma tradução da Oresteia. A Oresteia, assim explicará qualquer estudante do primeiro ano de clássicas, é uma trilogia composta de três peças de Ésquilo (Agamémnon, Coéforas, Euménides). O Agamémnon narra a história do regresso do Rei Agamémnon de Tróia e da morte deste às mãos da sua mulher, Clitemnestra, depois de este ter morto a filha de ambos, Ifigénia, para propiciar os deuses e poder partir para Tróia. Coéforas narra o dilema e a decisão do filho de ambos, Orestes, de matar a mãe para expiar o homicídio do pai. Orestes é instigado a tomar esta decisão pela irmã, Electra. A última peça é um marco na história do teatro na Europa e na história da filosofia ocidental sobre a justiça, talvez ainda mais do que todas as outras. É sobre como Orestes é perseguido pelas Fúrias, divindades tresloucadas que o enlouquecem por causa do crime que ele cometeu e de como, em Atenas, ele é finalmente julgado segundo uma nova forma de justiça, no tribunal do Areópago, o que põe fim a um ciclo de violência ancestral que, de outra forma, se perpetuaria infinitamente. Tudo isto estaria certo, mas a peça de Anne Carson não é nada disto. Anne Carson desconstrói a Oresteia de Ésquilo, agrupando três peças que não estas exactamente: passamos do Agamémnon de Ésquilo para a Electra de Sófocles e daí para Orestes de Eurípides, cujo final opõe ao peso da justiça esquiliana (e à narração vagamente propagandística do mito fundador de um respeitável tribunal ateniense) uma acção tragicómica, preocupada com a mesquinhez humana e com a vingança, com muito humor negro e melodrama à mistura, numa das representações mais negativas de Helena de Tróia que a tradição clássica nos legou. A peça termina com o casamento de Orestes com Hermíone, filha de Helena. É só depois de casado com a prima que Orestes é enviado para Atenas para ser julgado.

Há nos clássicos uma intensidade e uma violência que de várias formas são profundamente próximas do estilo de Anne Carson. Em Grief Lessons, outro volume de traduções de tragédias gregas, desta vez dedicado à tradução de quatro tragédias de Eurípides, Anne Carson escreve a propósito de Eurípides:

 

Who was Euripides? The best short answer I’ve found to this question is in an essay by B.M.W. Knox, who says of Euripides what the Corinthians (in Thucydides) said of the Athenians, “that he was born never to live in peace with himself and to prevent the rest of mankind from doing so.” Knox’s essay is called “Euripides: The poet as Prophet.”

 

E continua:

 

There is in Euripides some kind of learning that is always at the boiling point. It breaks experiences open and they waste themselves, run through your fingers. Phrases don’t catch, theories don’t hold them, they have no use. It is a theatre of sacrifice in the true sense. Violence occurs; through violence we are intimate with some characters onstage in an exorbitant way for a brief time; that’s all it is.

 

“There is in Euripides some kind of learning that is always at the boiling point...” e “through violence we are intimate with some characters onstage in an exorbitant way for a brief time…” Há qualquer coisa nesta frase que podia servir para descrever a inteligência de Anne Carson e a experiência de a ler. Pensamos, por exemplo, nas suas traduções dos fragmentos de Safo, a mais importante das poetas líricas gregas, intitulada If Not Winter onde, com um cuidado que relembra um pouco o cuidado mítico dos tradutores do Pentateuco em Alexandria, Carson traduz todos os fragmentos de Safo, enfatizando assim a nossa relação com a perda desses textos e expondo a paixão da nossa curiosidade pelo que é fragmentário, enquanto ao mesmo tempo somos envolvidos nas paixões fragmentárias de Safo. Este “some kind of learning that is always at the boiling point,” por outro lado, assoma no seu primeiro livro de ensaios, Eros the Bittersweet, o seu estudo das representações da fragmentação das emoções na literatura erótica da Grécia antiga.

Há depois livros que são alicerçados num dos traços mais vincados do estilo de Anne Carson, as ligações inusitadas, extremamente improváveis, que definem o seu pensamento crítico. Anne Carson é provavelmente a grande poeta comparatista do nosso tempo, se bem que esta etiqueta não descreve exactamente o seu método. Mas, The Economy of the Unlost, por exemplo, é um longo ensaio sobre a relação entre outro poeta lírico grego, Simónides de Ceos, o primeiro poeta a colocar um preço a um poema e a vendê-lo por dinheiro e não por outra coisa qualquer, e o poeta alemão Paul Celan, que, tão isolado no seu contexto como Simónides, teve de escrever poemas sobre coisas às quais é impossível colocar um preço. Penso que esta ideia de quanto vale um poema é uma obsessão de poetas de um modo geral, mas uma obsessão muito particular de Anne Carson, que, por vezes, nos seus livros, encontra expressão indirecta noutros contextos. O que vale um poema em face do suicídio de um irmão é uma das perguntas que pode parecer estruturar Nox, o livro que ela escreveu após a morte do irmão e sob a influência de um poema do poeta romano Catulo, um poema também ele escrito sobre a morte de um irmão, o chamado carmen 101.

Ou, para falar dos livros que a não edições tem traduzido e editado em Portugal, eles às vezes expandem a nossa percepção do que os géneros literários podem fazer para lá de quaisquer designações mais óbvias. Por exemplo, em teoria, Autobiografia do Vermelho, originalmente publicado em 1998, publicado pela primeira vez em Portugal em 2017, em tradução de Ricardo Marques e João Concha, é uma reescrita do mito de Gerião, mas é também algo que nunca antes tinha sido escrito, é um bildungsroman, um romance de formação, que é também a autobiografia de uma metáfora. Gerião é Gerião mas é também a metáfora de uma infância e adolescência de um artista, definidas pelo trauma e pela desadequação, pela auto-descoberta e pela auto-invenção. Gerião, a personagem e a metáfora, apesar do trauma, não se fecha, continua a procurar fora de si qualquer coisa que o traduza, apaixona-se, descobre-se parte de um triângulo amoroso, e regressa para uma sequela, red doc. Anne Carson chama a esta autobiografia um romance em verso.

Autobiografia do Vermelho, não edições, 2017

Alguma relação entre consequência, sequela e crise existe entre os outros dois livros que Anne Carson publicou e que eu traduzi para a não edições, A Beleza do Marido e Vidro, Ironia e Deus. A Beleza do Marido é o mais recente dos dois, foi publicado originalmente em 2001, enquanto Vidro, Ironia e Deus foi publicado pela primeira vez em 1995. A não publicou-os inversamente, A Beleza primeiro, em 2019, e Vidro, Ironia e Deus em 2021. Estas coisas confundem-se na cabeça dos leitores, mas A Beleza do Marido foi um dos primeiros livros de Anne Carson que li, durante um verão parcialmente passado no quarto de uma residência de estudantes que ficava nos arredores de Budapeste. Estava a dividir este quarto com uma jovem académica oriunda de Israel que encheu as minhas noites de um relato épico sobre a complicada linha de contactos a cultivar se queria ver os meus artigos publicados numa determinada revista da especialidade, um discurso cheio de confiança debaixo do qual se escondia a terrível precariedade e a competição muitas vezes amarga que são a condição da vida de jovens investigadores. Partilhava esse quarto e pensava constantemente em voltar a Oxford para desistir da tese de doutoramento que estava quase a acabar de escrever para escrever outra tese, o que na verdade acabou por acontecer. Dentro da minha mochila tinha viajado comigo de Inglaterra esse livro de Anne Carson, The Beauty of the Husband: a fictional essay in 29 tangos e eu costumava pôr um fim abrupto àquelas sessões gratuitas de aconselhamento profissional de alguém que, bem vistas as coisas, estava tão perdida como eu, dizendo que precisava de ir fazer um telefonema e ia lá para baixo, para o campo de basquetebol, ver os jogos e ler A Beleza do Marido. Eu estava nessa altura a vários anos de distância de começar a traduzir Anne Carson e de me cruzar com um famoso poeta norte-americano que tinha sido colega de Anne Carson na NYU e que, quando lhe contei que estava a traduzir este livro de Anne Carson, disse que quem lia o livro ficava com a impressão de que o marido era o único responsável por aquele divórcio. Noutra altura eu teria querido mesmo saber mais, mas não me interessou perguntar. Algures entre 2012, quando eu primeiro li A Beleza, e 2018, quando ouvi este comentário, a minha curiosidade febril acerca da biografia de Anne Carson tinha passado. Não há muito que se possa dizer sobre o grande trauma de um divórcio que seja particularmente original ou edificante quando o tom com que a conversa começa é normativo e aponta para questões de justiça retributiva. Nunca tinha pensado em A Beleza do Marido como um livro óbvio desse ponto de vista. O marido que aparece em A Beleza do Marido é certamente uma figura peculiar e tóxica, caracterizado como é pelas infidelidades recorrentes, pelas mentiras compulsivas e desnecessárias, pela fascinação com os jogos perigosos. Mas há qualquer coisa na natureza da mulher que é atraída por esse comportamento e que permanece inexplicada, o que talvez sugira uma natureza elusiva como a do marido. A ambiguidade do marido e a ambivalência da mulher, por outro lado, têm paralelos com o tipo de inteligência conjugal que se encontra na Odisseia, tornam-nos parte de uma longa tradição de literatura acerca de gente casada. Ao longo desses vinte e nove poemas talvez se reconstrua a linha de atracção, decepção, perda e, finalmente, resgate da beleza que podem sobreviver ao fim de uma relação. Pode-se então dizer que A Beleza do Marido é um livro que é um pouco como algumas das tragédias gregas que Anne Carson gosta de traduzir, é sobre expiação e veneno e sobre o veneno enquanto cura também. Desta forma, o livro evoca o lado inexplicável de certos laços que nos definem e da beleza que se agarra a esses laços, coisas que não se confinam puramente a uma lógica da tristeza – amantes, amigos, fragmentos de conversas, torradas, quartos de hotel, bolos de casamento, bagos de romãs, Tolstoi e Homero.

Vidro, Ironia e Deus, que acaba de ser publicado, é um dos livros mais estranhos de Anne Carson, embora pareça, em teoria, um dos mais convencionais. De todos os que aqui mencionei é aquele que em termos de classificação de género literário parece mais fácil de arrumar: cinco longos poemas e um ensaio. Mas os poemas são ensaísticos. Criam até o efeito estranho de subordinarem a uma dicção que muitas vezes parece convocar o tipo de estranheza que caracteriza a linguagem de um poeta difícil e caro a Anne Carson, Ésquilo, versos decididamente prosaicos, de onde qualquer musicalidade parece estar ausente. Este estilo de poesia ensaística gera cortes e elipses que se enchem de associações inusitadas, é fonte de drama e paródia, instaura muitas vezes o ritmo que se podia dizer que é o de alguém a pensar na própria música silenciosa do pensamento.

A Beleza do Marido, não edições, 2019

Vidro, Ironia e Deus é um livro que começa com a crónica de uma leitura obsessiva de O Monte dos Vendavais de Emily Brontë e que termina com um ensaio sobre o género do som ou, melhor dizendo, um ensaio sobre interpretações misóginas de certas vozes. Entre um texto e outro, muitas outras vozes se ouvem: a da narradora, a da mãe da narradora, a de Anne Brontë, a de Sócrates, a de Heitor, a de Deus, a de Isaías, a de uma mulher romana chamada Anna Xenia a quem morreu um filho. À medida que estas personagens se sucedem questiona-se o lado nocivo de sociedades estruturadas por convenções patriarcais, o que sabemos do passado, como reconhecemos os outros, como é que eles nos conhecem a nós, porque decidimos viver de determinadas maneiras, porque viajamos ou empreendemos longas caminhadas pelo gelo. Sentimos, à medida que lemos, que nos tornamos “…intimate with some characters… in an exorbitant way for a brief time…” Porquê essa exorbitância?, é uma pergunta que Anne Carson, que gosta de analisar primeiras causas aristotelicamente, poderia colocar. Não sei se existe uma resposta exacta a esta pergunta, mas no último parágrafo de Vidro, Ironia e Deus lê-se:

 

Ultimamente comecei a questionar a palavra grega sophrosyne. Interrogo-me sobre este conceito de auto-controlo e se realmente é, como acreditavam os gregos, uma resposta à maior parte das perguntas sobre bondade humana e dilemas de civilidade. Pergunto-me se não haverá outra ideia de ordem humana para lá da repressão, outra noção de virtude humana para lá do auto-controlo, outro tipo de eu humano que não um fundado na dissociação de interior e exterior. Ou, de facto, outra essência humana que não o eu.

 

Anne Carson, Vidro, Ironia e Deus, não edições, Lisboa, 2021, p.162 (tradução minha).

VIdro, Ironia e Deus, não edições, 2019

Criar a partir da ambiguidade

Henri Maldiney escreveu que «Nietzsche n’est créateur que dans l’ambigüité» (Nietzsche só é criador na ambiguidade), Art et existence, Klincksiek, 2003, p. 144.

A expressão é bela, mas perigosa. Perigosa porque é bela (o feio não queima, erige sempre uma distância protetora, no máximo irradia para dentro), acho que ainda não soubemos dizê-lo melhor fora da ideia de «femme fatal», mas agora há códigos de género que proíbem esta unilateralidade, e dizer «femme ou homme fatal» perde toda a graça. Portanto, a beleza de rotular Nietzsche como um criador amigo da ambiguidade abre para notas de rodapé analíticas que coloquem um espartilho no entusiasmo apolíneo (a embriaguez estética não é apenas dionisíaca), o guiem para a possibilidade do esclarecimento. Resumindo, por que razão Nietzsche só pode criar na ambiguidade?

A sua obra é, por um lado, um produto de uma certa perícia filológica, arte de desenterrar sentidos, ocupação típica de parte da academia germânica da segunda metade do séc. xix (a Alemanha, proto-Alemanha, buscava-se escavando o passado grego e romano, os estudos clássicos permitiam aceder às origens de uma Europa mais cosmopolita e estimulante do que a fragmentação quase arbitrária do feudalismo ou os impérios românticos francês e habsburguiano). Se é verdade que a sua filologia se desviou, quase desde o início, do verdadeiro do seu tempo; não é menos verdade que manteve uma arte da interpretação baseada no método filológico de atender cuidadosamente à intenção dos textos originais.

Por outro lado, contudo, a ambição de ser filósofo (uma ambição mas também um complexo), isto é, produtor de sentidos, fê-lo experimentar interpretações que devem ser validadas mais pelas repercussões do que pelas proveniências (filosofia contra filologia). Influenciado, também ele, pelos vitalismos grego e romano, Nietzsche interessar-se-á muito mais pelos efeitos existenciais (sim, um existencialismo, que preparou talvez melhor o de Jean-Paul Sartre do que o de Kierkegaard) do que por uma verdade fundada na adequação entre a realidade e o pensamento (simplifico: uma adaequation rei et intelectus). Querer viver múltiplas felicidades e infelicidades arruína as certezas.

E um produtor de sentidos ou dita e espalha dogmas, ou produz discursos ambíguos, cuja única arma está em cativar os leitores (pelo estilo e pelas imagens, mais do que pelos conceitos), porventura manipulá-los. Como na ficção, Nietzsche alia nos seus ensaios o que é dito e o que fica sugerido, à maneira do que escreveu certa vez Vitorino Nemésio: «o poeta afirma precisamente o que suspende na indeterminação do enigmático». E Nietzsche, não sendo um poeta acabado, continua a manter, sempre, uma parcela de enigmático em tudo o que escreve, mesmo nos textos que tradicionalmente a receção coloca mais perto do positivismo (Humano, Demasiado Humano e, talvez, Aurora ou parcelas de Para a Genealogia da Moral). Habitando, com a sua arte privada de interpretação, ao mesmo tempo o íntimo e o horizonte, tudo a partir do profundo conhecimento da respiração do seu tempo.

Por isso (podia dar outros exemplos), afirmou em Para lá Bem e Mal, §289:

«Não se escrevem livros, justamente, para ocultar aquilo que se encerra dentro de si? […] Cada filosofia é uma filosofia de fachada — eis a opinião de um eremita: “Há algo de arbitrário no facto de o filósofo ter parado aqui, de ter olhado para trás e à sua volta, de não ter cavado mais fundo e ter posto de lado a pá, — há nisso algo de que se deve desconfiar.” Toda a filosofia esconde também uma filosofia [Jede Philosophie verbirgt auch eine Philosophie]; cada opinião é também um esconderijo; cada palavra é também uma máscara.»

[jogo de sombras, a lenda criará o sentido]