«Torna-te quem és!» II (há uma primeira versão aqui na Enfermaria6, não saberíamos dizer de uma vez por todas como nos tornamos quem somos).
Esta máxima, atribuída a Píndaro (Odes Píticas, em honra de desportistas, e cujo sentido mais exato será «torna-te aquele que aprendeste a ser», um tornar-se que supõe uma certa aprendizagem de si no agon físico) concorre com o célebre «conhece-te a ti mesmo» apolíneo (que o Sócrates de Platão tão bem ilustrou). Nietzsche preferirá durante grande parte da sua obra, e nalgumas cartas, a primeira, destacando-a no subtítulo do seu último livro, Ecce Homo: «Wie man wird, was man ist» (como vir a ser o que se é). A sentença é paradoxal e vertiginosa, mas sintetiza bem os diferentes problemas da identidade, que oscilam entre a autodeterminação e a dissolução vs. concentração do eu. Pelo meio estão os vários modos e tipos de fabricação de sujeitos, de que os velhos e novos nacionalismos, com os respetivos lastros xenófobos, são apenas um exemplo.
Para Nietzsche, as antropotécnicas são louváveis quando nos permitem vir a ser o que somos, não no sentido heideggeriano de uma autenticidade onto-antropológica (o Dasein, ente lançado no mundo, incorrompido acolhendo o Ser) que substitua, e supere, as formas de ascese religiosa, mas como busca do impessoal que governa a nossa pessoalidade (renaturalização do humano), um determinismo mais frouxo do que o sócio-cultural. Não será assim Nietzsche, crítico do coletivo (rebanho moral e político), o inventor do eremitismo moderno, que em vez de regular a subjectividade pela intersubjectividade a amplifica até ao estouro? (entendendo o Übermensch como o super-homem que derrotou a Idade da Humanidade e retornou à Terra). Se lhe prestarmos a devida atenção, partindo, por exemplo, do que escreve em Assim Falou (ou Falava) Zaratustra, onde o sujeito decadente (ou decaído) é o resultado da soma de uma convenção linguística com um dispositivo religioso, cujo o objetivo é manter viva a ampla economia da culpa e do ressentimento, veremos que hesita e se embaraça com a possibilidade de um salto por cima do homem, que num só golpe constituísse aquele, ou aquilo, que deveríamos ser. E mesmo quando confrontado àquilo que pouco tempo depois dele dirá Freud (afirmava que não tinha lido Nietzsche seriamente porque temia descobrir que o plagiava), resiste coerentemente à tentação de tudo, ou quase tudo, convergir para o eu (em Freud, escava-se e domestica-se o inconsciente com uma grelha do consciente, pessoaliza-se o impessoal). Em Nietzsche, o devir individual (um tornar-se que nunca se conclui, dinâmica assimptota) conduz, por linhas mais travessas do que direitas, ao «si» (Selbst), em Freud, com a ajuda do psicanalista nos casos mais imbricados, ao ego.
Bom, mas então como e para quê tornarmo-nos o que somos?
Como: investigando, com uma racionalidade limitada, as linhas da estrutura orgânica, as forças construtivas e destrutivas (nisto, Nietzsche e Freud coincidem) que alimentam a nossa passagem pela vida, o complexo instintivo, pulsional. Não ser de nenhum lugar (atopos), não ter nenhum nome, um passado instável devido ao «eterno retorno do mesmo», um futuro radicalmente imprevisível (a «filosofia do futuro» perscruta-o, mas não o encontra), um presente perspetívico («mil olhos!», clama Nietzsche). O que somos nunca é um dado adquirido, melhor seria, então, dizer: «o que vamos sendo».
Para quê: por amor à alteridade, a desvinculação e a disseminação do eu abre a possibilidade de descobrir o outro desigual (grande parte da obra de Jacques Derrida parte daqui). Amar uma estrela não porque ilumina, mas amá-la por si mesma, como outro ser, insujeito aos nossos desejos ou caprichos. Amar até à plenitude de se amar o nada. Talvez aí encontremos, fugazmente, aquilo que somos (que é sempre, como queria Sartre e Beauvoir aquilo que não somos), já que as forças afirmativas que nos compõem (pouco domesticáveis) contribuem agora para a máxima potência da impessoalidade.
Para quem vir aqui uma qualquer forma de niilismo, parabéns, acertou. Mas cuidado, é o niilismo completo de Nietzsche, uma negação criadora, a recusa do que é para inventar outras formas de existir (o niilismo incompleto assenta na supressão da vontade à maneira shopenhaueriana). Como pensava Nietzsche, à morte de Deus seguir-se-ia a do homem, desde homem, para que nasça o sobre-homem, até porque só ele pode realmente amar o distante, um amor unilateral que perde, por isso, o reenvio das pulsões daquilo que é amado. Como se pode incandescer desta forma?
Ter-se-á tornado Nietzsche quem era?
No tempo de O Nascimento da Tragédia (1872) e das Considerações Intempestivas (1874-1876) a consciência e a salvaguarda de si obrigava a uma singularização, daí as críticas às massas, compostas por indivíduos que não cumpriram o seu destino, que não quiseram ser quem eram. É como se Aquiles tivesse recusado ser herói, preferindo uma existência tranquila. A felicidade superior nasce da tensão que se exerce contra si a favor de si, isto é, contra o que somos para nos tornarmos quem somos, para nos cumprirmos. Viver assim implica ser intempestivo, solitário, estar nas margens das massas e do verdadeiro, emancipar-se. Uma emancipação que, como disse, assenta na solidão, mas igualmente na emulação. Wagner e Schopenhauer, até meados da década de 70, depois Voltaire, Stendhal, Espinosa, talvez Bizet, por vez Sócrates e o mítico Dioniso insuflaram em Nietzsche a vontade e forneceram-lhe os exemplos.
Terá então Nietzsche cumprido o seu destino? Se acreditarmos no que escreveu no seu livro-testamento, Ecce Homo (final de 1888), no capítulo em que relê as Considerações Intempestivas, concluímos que sim. Diz ele: «Agora, que volto a olhar de uma certa distância para as circunstância de que esses escritos são testemunho, não quereria negar que, no fundo, eles apenas falam de mim. O que se intitula “Wagner em Bayreuth” é uma visão do meu futuro; pelo contrário, em “Schopenhauer como educador” está inscrita a minha história mais interior, o meu devir. E, sobretudo, o meu voto!...O que hoje sou, onde hoje estou — a uma altura em que já não falo com palavras, mais sim com relâmpagos. Oh!, a que distância daí eu ainda estava então! Mas via a terra — não me enganei, um só instante, quando ao caminho, ao mar, ao perigo — e ao êxito!» (tradução Paulo Osório de Castro, Obras Escolhidas de Nietzsche, Relógio D’Água, Lisboa, 2000)
Cumpriu o destino, tornou-se quem era, não de um só golpe, mas ao longo de vinte anos, pouco a pouco, hesitando e errando, mas não vacilando, experimentando as múltiplas possibilidades de vida que se lhe ofereceram e que conquistou. Pagando o preço de uma terrível incompreensão, do silêncio, mais do que das críticas, com que os seus livros foram recebidos, logo desde O Nascimento da Tragédia.
Por um lado, as palavras de Nietzsche que acabei de citar parecem ser suficientes para declarar a sua satisfação existencial. Por outro, no mesmo Ecce Homo, em «Porque sou um destino» assume o seu receio de ser mal compreendido (que o «canonizem»), daí esticar o seu destino até a incarnação num profeta, que vem dizer a verdade última de que houve uma inversão de todos os valores, que só depois dele pode voltar a haver esperança. E por isso, escreve no final absoluto do livro: «Compreenderam-me? Dioniso contra o Crucificado…» (Idem) Ora, Dioniso é aquele que nunca se pode cumprir, porque eternamente se compõe e descompõe, se forma e dilacera, se faz um e se faz outro, outros. Dioniso não tem um destino, mas pode ser o próprio destino, porque é composto por pulsões nascentes e evanescentes, vontades de potência interagindo em cumplicidade ou rivalidade. O ter-se tornado Dioniso foi mais uma forma de anular o destino do que cumprir o destino, uma emancipação feita ao contrário, uma autossuperação (Selbstüberwindung) de marcha atrás. Mas que só podia acontecer depois dos vários saltos em frente que o conduziram ao colapso mental do início de 1889. E há aqui qualquer coisa de divino, que na Grécia vinha ao mundo para no final se certificar que pertencia de bom grado ao Olimpo.
Daí Nietzsche fechar o último livro com a personagem filosófica que tinha aberto a sua contenda com o mundo filológico e filosófico da sua época: Dioniso. Nietzsche sempre foi Dioniso, mas teve de percorrer um longo caminho de pensamento e sentimento para confirmar isso mesmo. Teve de tornar-se quem sempre foi.