Três poemas de Ismar Tirelli Neto

O que foi ao chão

  tendo visto o “Jaime”, de António Reis e Margarida Cordeiro

Dizem-me
que nos limites desta propriedade
corre um regato em sépia
que pelas margens
moitas de flautas
dão abrigo à microfauna
de nossos loucos dormidos
circulares

Que são aquelas águas
de visões

Que nas moitas os loucos
voltam
a ter espinhos

 

*

Feito Adão pela manhã

Alguém vinha aos magotes
O homem nomeou-o
Obra de cestaria         

Um dobre de sinos
Anaeróbio capaz de cinema
Alguém vinha quitando 

Alguém ele próprio uma
Imediação, drama de desfiguramento
A molengar do ponto A

ao ponto B vinha alguém saldado,
saldando. Nomeou-o
o homem – A mesma moeda

Vinha alguém do clarão
ao digesto do clarão
desfalecer sobre a mesa de centro

Vinha alguém com um sumário
da sala de estar – e as palavras
ESTA HORA DA NOITE

Deste que vinha não
se dirá mais que –
ESTA HORA DA NOITE

 

*

Sobre foto de George Platt Lynes

I.

Quantos já não se terão mudado deste homem?
Deus desdenhou da basílica, desmedida –
E para os que tornam exaustos da fábrica – uma caixa de charutos.
Emparedaram-no reto, passa frio, passa função.
Trata-se de aberturas sutílimas, concreto para o olho nu.
Não as divisaria a mais agigantada pupila.
Parece fechado. O torso. Absolutamente.

II.

Entra-se por uma boca escarpada de língua.
O hall rói-se, no pátio pacienta um carcinoma,
Convém não olhar nos olhos.
Convém descer.
Pode-se apenas descer.
Aqui as volutas onde se produz voz.
Ali, o vão onde vamos todos arejar.
Mais abaixo, sempre mais abaixo, as vesículas
Onde aguardamos
notícias da soltura.

*

 

 

 

 

DA ERUDIÇÃO e outros poemas

“o máximo de violência num mínimo de retórica”

António Osório

         DA ERUDIÇÃO

                                                -----------------------------------

                                   (Coloque aqui a sua epígrafe!)


Segundo uma crítica literária

uma senhora com dois seios

e muita base cor de cenoura

na cara a jovem poesia sofre

de um grave problema: um

excesso de citações explícitas

num corpo sem grande trata

mento literário. Ou seja um

lenço Louis Vuitton numa

cara sem base cor de cenoura.

O ponto da discussão deve

centrar-se no que entende

a senhora crítica por erudição

ou o que é para si a poesia.

Ora poesia para a senhora L&V

tem de ser a língua mastigada e

enrolada vezes sem conta! -  o

mesmo é dizer altos exercícios

de regurgitação cópia e repetição

de antigos e velhos modelos que

ninguém consegue já entender.


E levanta a questão o poeta:

Como usar a erudição sem cair

nos jogos telúricos e ocos?

Simples! Alternando espinhas de

peixe e duas ou três pinceladas

de viva e intensa cor.

Falta sim à senhora crítica

a capacidade de ver que os

novos poetas (esses banais

jovens poetas!) estão mais

interessados em explorar

novos trios do que repetir a

velhas e cansativas retóricas.


Isto é um poema? Pergunta

a senhora com lenço L &V

e com três camadas de base.

Sim é um poema. Porquê?

Porque assim o digo e quero.


   UMA PINCELADA DE TORONI


Numa tela de sete metros e quarenta e cinco

centímetros existem seis pinceladas de forma

quadrangular sobre uma superfície de tela nua.

Dedicar-me-ia a todas se tivesse o devido

tempo e força necessária para debruçar-me

sobre elas assim vou concentrar-me apenas

na terceira a primeira da segunda fila que não

existe. A sua forma não é a de um quadrado

 perfeito e no entanto podemos falar de um

quadrado onde são visíveis as impressões do

pincel uma espécie de arranhar de unhas.

Entre esta primeira pincelada da segunda fila

importa a distância exata com a segunda da

segunda fila que não existe. Há entre as

duas um preciso espaço de dois metros e

quarenta e sete centímetros. É precisamente

esta pincelada que aqui aponto neste poema

que apenas aponta a existência de uma mera

pincelada numa superfície nua. Cada verso pode

ser entendido como o tempo dispensado a

observar a pincelada escolhida no espaço vazio

da tela no espaço vazio da sala no espaço vazio

do museu. Importa verificar que este quadrado

não é perfeito como a respetiva pincelada.  

Importa também dizer que este é o poema da

pincelada escolhida e que dentro dele está

tudo aquilo que não vou dizer porque assim

exige a pincelada que escolhi na fila que não

existe. Na  p    i     n     c     e     l     a     d    a

esta pincelada corresponde à letra n – n de

nada a acrescentar a não ser apontar que

a pincelada existe e está aqui neste poema.


E por mais que seja irritante ela está e não

está aqui neste poema que fala de uma

pincelada marcada apontada numa tela

vazia de sete metros e quarenta e cinco

centímetros. É este simples apontar que

cria a pincelada o quadro o poema esta

nossa pequena vida. Importa para finalizar

apontar que esta tela não existe no museu.

E no entanto mesmo sem querer ela existe

    em toda e qualquer obra de Toroni.



ALL-OVER  1948


POLLOCK AMARELO POLLOCK POLLOCK AMARELO POLLOCK POLLOCK AZUL POLLOCK AMARELO POLLOCK POLLOCK VERMELHO POLLOCK POLLOCK VERMELHO POLLOCK POLLOCK AZUL POLLOCK POLLOCK AMARELO POLLOCK POLLOCK POLLOCK AZUL POLLOCK POLLOCK AZUL  VERMELHO POLLOCK POLLOCK POLLOCK AMARELO POLLOCK POLLOCK AZUL POLLOCK POLLOCK AZUL POLLOCK AMARELO POLLOCK POLLOCK  VERMELHO AMARELO POLLOCK POLLOCK POLLOCK


   NOMIT

Quando o mundo

te vira

as costas

ut

viras as costas

ao mundo

OSCILAÇÃO

Quando tudo oscila

entre Verdade e Negação

este poema

fixa

.

Fixa a ideia

do espelho imóvel

no ponto que se abre

ao velho e longo tempo

Outrora impossível este é o

ponto da fissura

fixa

.

E

no fixo leve

segundo ponto a

porta intermitente cinge

para dentro do seu peso

dando ao paralelo tempo

nova chave nova

esperança


A NOVA REVISTA DE POESIA

(I don't need your sympathy – Cher)

A chuva da crise económica foi tão

intensa que aqui estão todas elas fortes

crescendo como ervas daninhas na vasta

planície da futura e “inesquecível” literatura.

Na segunda-feira

Dona Olga

(que nunca vi mais gorda)

veio pelo facebook pedir-me

cinco poemas inéditos para analisar e talvez

(se assim o achasse)                           publicar na sua revista

          de papel reciclado e                           com duas andorinhas de

       muito mau gosto na                        capa. Parei. Pensei cinco

minutos e como sou muito boa pessoa (apesar

desta língua de chicote) enviei os cinco poemas.

Mas

 (e aqui é que está a melhor parte)

os cinco

piores que tinha meios inacabados apontados

(gosto imenso da palavra apontado há nela genuíno pulso).

E assim safei-me de ser na dita revista publicado.

A tão estimada

revista que traz

todos os grandiosos nomes da Nova Poesia – os

que vão da receção da Quinta à recolha dos bonés

no pátio principal do velho castelo do beija-mão.

Que se multipliquem

 como ratos

 mas

que as velhas braguilhas e florzinhas de salão não

me venham chatear a minha já de si cansada tola.

Por isso minhas

queridas

florzinhas de plástico de decadente salão aristocrata

eis a vossa custódia de ouro para o culto glorioso do vosso Ler.

Lisboa-Museu_Nacional_de_Arte_Antiga-Custódia_da_Bemposta-20140917.jpg

 Custódia de Bemposta, MNAA, Lisboa.



Três tempos sobre uma praça vazia

Quem confundiu os três tempos

com uma praça vazia deixou desperta

a cidade de um cinzel ou de um escultor

que esculpiu letra a letra uma esfinge

mas ela desta feita não devorava homens

sorvia almas a três tempos como se

a humanidade adormecesse sempre

prostrada e quem confundiu a praça

despida de páscoa ou os ramos caídos

nunca se preparou para o sorriso da estátua

nunca se preparou para uma rota no deserto

e nunca viu uma planta a três tempos

uma roseira ou um acanto ou um papiro

que nunca puderam rasgar a secura

da tua voz que declamava areia e pronunciava

enigmas de praças agora sim silenciosas

como pequenas sombras sem graça ou escuras

como sempre fingiram os planaltos quando

quando os profetas lhes reclamavam a altura

a três templos três tabernáculos tu nunca

tu nunca confundiste a noite com os teus joelhos

mesmo que eles nunca repousassem sobre lajes

três tempos    reclamavas     a tua língua vermelha

descansava na boca a imaginação do céu

e de lá vinham sussurrantes os últimos planetas

e eu decorava os seus nomes ou melhor

decorava o último dos três     o que num lamento

morreu da minha infância agora agora

que vejo a praça vazia não espero vestes

vestes brancas ou anjos ou esfinges agora

prostrado sou eu que pergunto que animal

que animal tem três valsas e nunca se despede

nem quando a terra o cobre com o esquecimento

que eternidade tem essa alma que vive

mesmo que a escuridão da praça vazia

o convide ao pó e à sombra mesmo que

ainda que todo o silêncio seja provisório

mas já tu me preparas a esfinge     a afias

a embotas     a tornas macia     manejável

já tu de dia lhe chamas uma história     a aninhas

a acalantas com pequenos gestos de acanto

e logo no deserto as raízes procuram não a água

mas três tempos de praças vazias sem que nunca

nunca se tivesse perguntado o que faremos

de todo este espaço quando apenas os nossos filhos

os nossos tristes filhos andarem por cá o que será

dessa escada que construíste em madeira

e que nunca levou a lado nenhum    apenas sabia

o que será de nós    os mortos    quando confundirmos

a praça vazia com a solidão do tempo

nem que fosse em valsas de mil tempos

e nunca me apercebesse de ti no deserto

o que será de nós quando a areia chover

e a água nos cobrir de tempo o que será

da esfinge quando dela restar apenas o enredo

o que será dos que confundem a lentidão

com os três templos arrependidos os três

os três tabernáculos o que será de mim que pergunto

a mais humana das perguntas    se és tu

e vejo estarrecido uma esfinge degolada

a mil tempos    isto é   todos os romances escritos

de todas as praças vazias.

 

 

Charles Bukowski, "o homem ao piano"


Buk at the piano.jpg

Tradução: João Coles


o homem ao piano
toca uma música
que não compôs
canta palavras
que não são suas
num piano
que não lhe pertence.

enquanto
as pessoas à mesa
comem, bebem e falam

o homem ao piano
termina
sem aplausos

e logo
começa a tocar
uma nova música
que não compôs
começa a cantar
palavras
que não são as suas
num piano
que não lhe pertence

enquanto
as pessoas à mesa
continuam a
comer, a beber e a falar

quando
termina
sem aplausos
anuncia
ao microfone que
vai fazer
uma pausa de dez minutos

vai
à casa-de-banho
dos homens
entra
numa cabine
tranca a porta
senta-se
puxa dum charro
e anima-se

está contente
por não estar
ao piano

e
as pessoas sentadas à mesa
comendo, bebendo e falando
também estão contentes
por ele
lá não estar

é assim
que as coisas funcionam
quase em todo o lado
com tudo e todos
enquanto ferozmente
nas montanhas
o
cisne negro pega fogo


in Dangling in the Tournefortia, 1981


the man at the piano

the man at the piano

plays a song
he didn't write
sings words
that aren't his
upon a piano
he doesn't own

while
people at tables
eat, drink and talk

the man at the piano
finishes
to no applause

then
begins to play
a new song
he didn't write
begins to sing
words
that aren't his
upon a piano
that isn't his

as the
people at the tables
continue to
eat, drink and talk

when
he finishes
to no applause
he announces,
over the mike, that he is
going to take
a ten minute break

he goes
back to the men's
room
enters
a toilet booth
bolts the door
sits down
pulls out a joint
lights up

he's glad
he's not
at the piano

and the
people at the tables
eating, drinking and talking
are glad
he isn't there
either

this is
the way it goes
almost everywhere
with everybody and everything
as fiercely
in the highlands
the
black swan burns


in Dangling in the Tournefortia, 1981