Peças de Agrigento

Peças de Agrigento 

Quando o banquete caiu sobre os mortos, 
já não havia mundo. 
Os olhos que, torpes, insanos, abriam o pão, 
comutavam com a noite o seu estado longínquo 
e nada se via nos veios da carne do cordeiro 
que se abria no chão. 
Como um longo lamento, 
a sede chegou primeiro e no fim. 

Sangraram como os bodes antes de Cristo, 
e deixaram os ossos ao fundo do mar. 
Um dia, de volta, os Gregos, 
Ghirlandaio, 
os árabes e as rotas, 
entre as bacias e as rochas, 
à boca do Mediterrâneo. 

As catacumbas 
saltaram como peixes 
nas faldas da água, 
porque a terra tremeu 
sem que se ouvisse, 
até abrir. 
Os corpos dobraram 
para morrer juntos 
e o frio cedeu inteiro 
sob a canícula e a luz. 
Quando partiram, 
eram da areia. 
O vento cegou a manhã 
que debutava. 
Era Bizâncio, 
os nomes começados e o destino. 

As tumbas, hoje, 
como moldes, visitas entrecortadas 
do abandono. 
Ovos que o tempo desfez, 
desde a fusão. 
Silêncio como sarcófagos, 
orlas na vez do mar. 

Oramos por um tempo inteiro, 
como o passado, primórdio, 
que abriu o mundo, 
não fosse circuncidado o tédio, 
desde os macacos. 

Como se o mundo não se pensasse, 
porque se deu a ver, 
escoamos nas imagens, 
escuros, de um só lado, 
com mãos de cacto. 
Se uma janela se abrisse no centro do sol: 
da cegueira próspera, finalmente o olfacto. 

Seco, como o ânus, 
o conhecimento 
que propaga. 
Oh, 
lugar metafísico, onde estás? 

Debaixo da Figueira 

 

No verão a sombra daquela figueira enchia-se de diferentes sotaques, 

De netos e filhos, havia vida atrás daquele muro, que os gatos ignoravam 

Como qualquer fronteira ridícula, às vezes quando não havia outras vozes, 

Ouvia-se falar com o cão ou com as galinhas, nos invernos havia um silêncio frio 

Debaixo da figueira nua, a humidade aos poucos depositava-se nos ossos, 

Fazendo pesar os anos e com o peso dos anos, cada vez menos vozes 

Debaixo da figueira, nas tardes de canícula, quando me julgava só, 

Debaixo do marmeleiro, matraquilhando contra mais uma ressaca, 

Ouvia o roçar dos ramos da figueira no muro, não era um gato, 

Não era o vento, então ouvia-a a ela, que me chamava e deixava 

Sobre o muro um saco com um tupperware, quando adivinhava 

Que eu por ali, logo apareciam uns dormidos, depois surgiam 

Umas análises que impotente lia e dizia o que já era sabido estar mal, 

Aqueles malditos diabetes e tinha razão, nunca lhe reconheci uma palavra 

Que me ofendesse, mesmo quando era garoto e ignorava, como os gatos, 

Fronteiras e muros, envelheceu debaixo daquela figueira, chamava-se Esperança. 

 

Turku 

 

16.11.2020 

Rui Cóias, "Duas canções póstumas para Paul Celan"


1. Canção de Brzezinka (1)




Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos

Paul Celan


Onde vieres também tu a sussurrar 
nas valas, nem que faminta esteja a tua voz
e se teus olhos os vir de madrugada, 
perdidos pelos campos, em sítios que estremecem, eu regresso, «eu
até nas ondas do meio-dia, na linha calma das cerejas, 
se te vejo, Margarete, eu «escureço, e escureço
como o cabelo com o tom escuro dos violinos me escurece, 
como escurece o vento nos bosques frios 
em que morremos, escurecem as alamedas
escurece o leite negro que bebemos e bebemos. 

Onde vieres também tu pelo adordo sublime 
do infortúnio, nem que franzido seja o teu sangue
e se teus lábios os vir ao entardecer, 
à hora mágica, lendo os poemas da Galícia, eu regresso, «eu 
até nos comboios que cavam um túmulo pelos ares, 
se te vejo, Sulamith, eu «escureço, e escureço
como o entardecer nas horas mais pequenas me escurece, 
como escurecem as rugas pelos rostos
ardendo sombriamente, escurecem os poemas
escurece o leite negro que bebemos e bebemos.


2. Canção da Carélia (2)



Leslie, a morte, a quem sorrindo beijas o tornozelo 

Paul Celan 


Leslie, a morte, a quem sorrindo beijas o tornozelo, 
quem diria ser a namorada ensaiando na fronteira
a dança lenta, à aura que burila nos loendros,
quem diria que a coroa ela deslaçasse, seduzindo-nos, 
quando com ela baila o rancho, o rancho da Carélia. 

Roseira que desabrocha ao coro de vozes da Carélia,
vem à tardinha insinuar-se na sebe e recitar as suas rimas, 
que ora na volta adejam, ora a chorar bem querem,
p’los arraiais brandidas em travessas de madeira. 

Quem diria Leslie que ao seu beijo o refrão entoasse
e a grinalda o tornozelo afagasse aos viandantes,
tu que a folia adornas batendo um contra outro os pés, 
que o estalajadeiro baixinho repete em brincadeira. 

Mais hora menos hora não haverá noite na Carélia, 
aziaga noite em que ambos passeamos solitários,
à beira de outra lâmina que oscila no moinho,
à beira da vigília mentirosa sobre o dia. 

Cautela pois mocinha andante da fronteira,
tem cautela que o sol esplende se sorris — «e se a brisa no 
prado a vês passar — a vês passar — olha
como ela já dança — dança — agora, Leslie,
tu com madeixas em vagas luminescentes, agora, Leslie.» 






(1) In Brzezinka, ou Birkenwald, na Silesia, Polónia, o sentimento que assola o observador vazio, ao avançar por desvios ou trilhos, para lá das folhagens do bosque, ou nas cercas arborizadas que o aproximam de um ponto em que se cruza com um terreno, um baldio, com tempos individuais num fluxo de segundos, cada pequeno elo entre mulheres e crianças deitadas no catre, cada olhar — que se supõe conter os salmos, os cantos populares, holandeses, russos, húngaros, polacos — exprime, mais ainda que a funesta existência real que o rodeia, o contraponto quase metafísico, referido por Kertész, com que fazemos tentativas para pontuar vínculos desconhecidos e funestos, traçando inclusive os olhos que distinguiram nas bétulas a claridade das estrelas, o vento numa certa permanência ou a linha fantasmagórica do azul-celeste da noite nos gradeamentos de jasmim. 




(2) (Carélia) Não se sabe ao certo em que raízes profundas têm início os fragmentos que espelham as reflexões que diante de nós recuam, como não se sabe de onde provém o estrépito do machado que ecoa nas florestas do sul da Kareliya, como não é claro poder saber quando pisamos sem dúvida a fronteira que funde as aldeias e os pinheiros bravos da Finlândia e da Rússia no caminho certo ou no caminho escolhido, como não é discer- nível, nem imaginável, saber onde começa ou acaba o Ocidente, onde começam ou cedem as ligações entre o pensamento e o seu destino, onde se levantam as faúlhas da vida que pousam na morte, e as da morte que transcendem a retaguarda da vida, onde se ouvem os coros da ortodoxia e do cristianismo, onde se iniciam os salmos e terminam as canções populares, onde está de facto reservada a lembrança da nossa existência.

Charles Bukowski, "o banho"

Tradução: João Coles


gostamos de tomar banho depois
(eu gosto da água mais quente do que ela)
e o rosto dela sempre suave e cheio de paz
e ela lava-me primeiro
ensaboa-me os tomates
levanta-os
aperta-os,
depois lava-me a gaita:
“eh lá, isto ainda está duro!”
depois lava-me os pêlos lá em baixo, –
a barriga, as costas, o pescoço, as pernas,
eu sorrio sorrio sorrio,
e depois lavo-lhe a ela...
primeiro a rata,
ponho-me atrás dela, a minha gaita entre as nádegas dela
ensaboo-lhe suavemente os pentelhos,
lavo-lhos num movimento delicado,
talvez me demore mais do que o necessário,
depois atrás das pernas, o rabo,
as costas, o pescoço, viro-a, beijo-a,
ensaboo-lhe os seios, depois a barriga, o pescoço,
as coxas, os tornozelos, os pés,
e depois a rata, mais uma vez, para dar sorte...
mais um beijo, e ela sai primeiro,
seca-se à toalha, às vezes canta enquanto ali me demoro
ponho a água mais quente
desfrutando dos bons momentos do milagre do amor
e só depois saio...
é normalmente de tarde e faz silêncio,
e enquanto nos vestimos falamos sobre o que mais
poderíamos fazer,
mas estar juntos resolve quase tudo,
na verdade, resolve tudo
pois enquanto estas coisas estiverem resolvidas
na história entre mulheres e
homens, é diferente para cada um –
para mim, é esplêndido o suficiente para relembrar
após as memórias de dor e de derrota e de infelicidade:
quando me levares isto
fá-lo lenta e docemente
fá-lo como se estivesse a morrer no sono em vez de
na minha vida, ámen.


the shower

we like to shower afterwards
(I like the water hotter than she)
and her face is always soft and peaceful
and she'll watch me first
spread the soap over my balls
lift the balls
squeeze them,
then wash the cock:
"hey, this thing is still hard!"
then get all the hair down there,-
the belly, the back, the neck, the legs,
I grin grin grin,
and then I wash her. . .
first the cunt, I
stand behind her, my cock in the cheeks of her ass
I gently soap up the cunt hairs,
wash there with a soothing motion,
I linger perhaps longer than necessary,
then I get the backs of the legs, the ass,
the back, the neck, I turn her, kiss her,
soap up the breasts, get them and the belly, the neck,
the fronts of the legs, the ankles, the feet,
and then the cunt, once more, for luck. . .
another kiss, and she gets out first,
toweling, sometimes singing while I stay in
turn the water on hotter
feeling the good times of love's miracle
I then get out. . .
it is usually mid-afternoon and quiet,
and getting dressed we talk about what else
there might be to do,
but being together solves most of it,
in fact, solves all of it
for as long as those things stay solved
in the history of women and
man, it's different for each -
for me, it's splendid enough to remember
past the memories of pain and defeat and unhappiness:
when you take it away
do it slowly and easily
make it as if I were dying in my sleep instead of in
my life, amen.