[meu avô tinha dois grandes medos]

meu avô tinha dois grandes medos
tomar bofetadas no saco e ser enterrado
vivo. uma vez o vi colocando meias dentro
das calças porque no dia anterior quase brigou
com outro velho no mercado

quando meu avô morreu, eu me aproximei do caixão
e beijei sua testa, é pro teu bem, eu disse
e ameacei bofetear o seu saco
ele não se mexeu

minha avó disse que quando se casaram
ele queria viajar, viajar sem parar
por isso suas roupas estavam sempre bem dobradas
e no entanto nunca saiu da sua cidade natal

depois de um tempo compreendo que o seu maior
medo não era bem esses dois, mas algo que o ocupou
toda a sua vida e que, pelo menos a morte, poderia sanar

algo como fazer as malas
e nunca partir

[chega de desculpas]

chega de desculpas
Gugu
estamos
para lá
de redenção

diz Séneca
grande é o homem
que trata
o que é de barro
como se fosse de prata
e não menos grande
é aquele
que trata
o que é de prata
como se fosse de barro
mas nós
que somos de barro
que felicidade
podemos achar na prata
a consolação dos derrotados?

debatemo-nos toda a noite
Gugu
certame aceso
aguardas
as labaredas da verdade
mas só
quando a manhã chega
é que vês
que as ferramentas
que usas
para medir as coisas
estão descalibradas
as palavras
estão tortas
as metáforas
instrumentos
de opressão
agora é claro para nós
Gugu
que as palavras
assentam
em assimetrias
estão a um ângulo da verdade
mas é difícil de ver
de que lado
o ângulo agudo
e por isso embelezamos
para não mentir descaradamente
mentimos discretamente

estabelecemos relações
entre objectos
a distâncias indeterminadas
das nossas mãos
e julgamo-nos sábios
e ficamos contentes
o nosso prémiozinho
de consolação
medalha de prata
funil na cabeça

3. (3/3 poemas de Ana C. Joaquim)

ela atravessa ruas cheias de carros.
ela ouve o ruído das buzinas e dos motores. é
a um só tempo
iluminada e obscurecida pelos faróis que se erguem
subitamente
sobre a sua incapacidade de olhá-los.
ela não espera.
ela caminha na sua direção.
ela que desconhece o nome que tem.
ela que não tem um nome próprio.
ela se levanta.
ela lava o seu rosto.
ela se senta.
volta a se levantar. 

você que tem um nome.
você a quem ela se dirige.
ela abre o livro
(sim, ela abre o livro quando se senta).
é o seu nome que ela lê no livro.
ela volta a se levantar.
ela que nem mesmo tem um nome
ela volta a se levantar:
chegará com você quando você chegar.
chegará desprovida de nome.
chegará sem o entendimento das coisas
(as coisas que possuem um nome).
olhará para as suas mãos.
olhará para os seus olhos.
você que tem mãos.
você que tem olhos.
você que tem um nome que ela não pode compreender.
você que tem um nome que ela chegou mesmo a pronunciar
(foi assim não foi? enquanto ela caminhava…?
ou terá sido quando ela se sentou?).
ela volta a se levantar.
atravessa ruas cheias de carros. ouve.
é.
caminha na sua direção.

Terena

de azul e amarelo
riscam-se caiadas
as casas honestas
sob o sol alentejano

reverbera branco o calor 
abafo de luz onde rebrilha 
a cegueira curva
xisto coberto pela mole temperatura
das horas que desconfiam 
em vago ócio consumado

sobrolho franzido 
fixo
e outros esgares esquivos
não é amistoso 
o rosto agreste de quem ocupa
as paredes raianas 
destes lugarejos
parcos de forasteiros