A Montanha Mágica e o Escândalo da Distância

No seguimento do último café filosófico dedicado à Montanha Mágica de Thomas Man, teremos, desta vez, na livraria Snob, em Lisboa, o prazer, cognitivo e estético, de contar com a presença do autor de O Escândalo da Distância. Uma Leitura D’A Montanha Mágica Para o Século XXI, João Pedro Cachopo.

Regressamos, sem qualquer retromania, a uma das obras mais importantes da cultura alemã, a qual, contudo, é capaz de se elevar muito para lá das fronteiras dessa mesma cultura. É por isso que continua a dar a pensar a leitores de muitas regiões da Terra, continua e continuará, com o seu fulgor quase suspeito. É difícil imaginar, apesar do embrutecimento que nos assola, o desvanecimento D’A Montanha Mágica, pois trata-se de uma portentosa arte do romance: narrativa repleta de apontamentos filosóficos; um fresco acerca do retorno cíclico do dionisíaco bárbaro; um ensaio sobre o tempo e o ente, sobre a morte e o morrer, sobre a paixão («um amor que vive na dúvida»), sobre a admiração, sobre a técnica; um exercício de esclarecimento, quase militante, acerca de forças políticas progressistas e reacionárias, ambas revolucionárias, ambas com vocações obscuras; um arquivo do ridículo; uma força de emancipação; um neopaganismo incapaz de apaziguar «a grande exasperação»; tudo isso entre um tédio que eleva e outro que rebaixa.

Em O Escândalo da Distância, João Pedro Cachopo interpreta a obra de Mann a partir da tese de que se trata de um «romance filosoficamente pertinente», pois questiona a condição de possibilidade da própria filosofia — que, para o nosso ensaísta, reside na boa distância, a qual só pode ser encontrada na planície, e não na montanha. Após abordar os grandes temas do romance, Cachopo reflete sobre A Montanha Mágica como um romance sobre o tempo, sobre o seu tempo (Zeitroman) e sobre o nosso tempo. Conclui o ensaio com uma hermenêutica assumidamente pessoal, que questiona a atualidade, as forças da graça e da desgraça que a atravessam, os compromissos éticos e políticos que se impõem e a busca da boa distância, tanto epistemológica como empática. Trata-se, além disso, de um ensaio que quis afastar duas personagens conceptuais: o militante («que sempre já sabe de que lado está») e o esteta («para quem nunca há motivo para se comprometer com um mundo cruel e vulgar.»).

Haikus

Relâmpago –

No vazio de um balde

Água esquecida

 

Shiki

 

 

também na solidão

existe felicidade –

crepúsculo de outono

 

Buson

 

 

ave engaiolada

olhando invejosamente

para as borboletas

 

Issa

 

 

mal chega para cobrir

merda de cão –

primeira neve

 

Issa

 

 

ignorando a morte

contudo todos nós

temos que morrer

 

Betenshi

 

 

deixando para trás

todas aquelas preocupações ­–

dia de folga

 

Yasui

 

 

diospiros tão verdes

que nem os corvos

os olham

 

Bokusui

 

 

metido todo

cinco ou seis polegadas

sentem-se como um perfeito dez

 

Kikô

 

 

na pequena ameijoa dela

a quente malagueta dele –

brincar às casinhas

 

Shōki

 

 

sabem os céus e a terra

toda a vizinhança sabe

só os pais dela não sabem

 

Shishōshi

 

 

numa beldade

nem mesmo a rata

mete nojo

 

Yashû

 

 

vindo-se de verdade

a servente

irá guinchar como um porco

 

Konjin

 

 

do buraco nasces

no buraco gozas

para o buraco irás

 

Aryū

 

Traduzido do inglês, a partir do “The Penguin Book of Haiku” (Penguin Classics, 2018)

A Montanha Mágica e os signos

A Montanha Mágica (título original em alemão: Der Zauberberg) é um romance publicado em 1924 por Thomas Mann, escrito entre 1912 e 1923, após a estadia da sua mulher, Katia, em 1911, no sanatório de Davos, na Suíça. É considerada uma das obras mais importantes e influentes da literatura alemã.

Situado no início do século XX, o livro relata a experiência singular de Hans Castorp, um jovem engenheiro oriundo de uma família de comerciantes de Hamburgo, que, em 1907, visita o seu primo Joachim Ziemssen, militar com «olhos meigos», em tratamento no sanatório Berghof, na estância alpina de Davos. O jovem hamburguês, após lhe ser diagnosticada uma pequena infeção tuberculosa, é aconselhado a prolongar a sua estadia para além das sete semanas inicialmente previstas, que se transformam, afinal, em sete anos. Durante esse período, Hans imerge e adequa-se ao microcosmos das «pessoas lá de cima». Um fresco meio heteropático do mundo cosmopolita da época.

A sua permanência no sanatório, sob a direção do consultor Dr. Behrens, leva-o a conhecer uma galeria de personagens que, no seu conjunto, parecem compor o Zeitgeist da época: Lodovico Settembrini, um italiano maçon e defensor da Razão e do Progresso; Léon Naphta, um místico noviço jesuíta e implacável crítico da sociedade burguesa capitalista e do princípio aristotélico da bondade racional; Mynheer Peeperkorn, um hedonista carismático, e a sua companheira Clawdia Chauchat, uma figura livre das convenções, descrita como uma possível femme fatale, por quem Hans Castorp se apaixona, evocando a memória erótica de um amigo de escola de Lübeck, Pribislav Hippe. Entre outras figuras marcantes, destaca-se também o Dr. Krokovski, assistente de Behrens, inclinado para a psicanálise e prolífico conferencista sobre temas como a relação entre o amor e a morte.

Talvez um Bildungsroman, A Montanha Mágica narra os sete anos que moldam Hans Castorp, ao longo dos quais ele reflete e aprende sobre o amor, a morte, o tempo, a amizade, a doença, o tédio, o ódio... Aprende também que a morte não deve vencer a vida, talvez uma aprendizagem frustrada, sistematicamente frustrada.

Neste café filosófico, propomos pensar, inspirados pela abordagem de Gilles Deleuze em Proust et les signes, quais os signos principais que estruturam esta obra de Thomas Mann e de que forma contribuem, interna e externamente, para a constituição de aprendizagens. O que aprende Hans Castorp? E o que aprendemos nós, leitores, ao acompanhar a sua trajetória?

Esta reflexão também nos permitirá preparar o café filosófico de fevereiro, no qual teremos a honra e o prazer de acolher o autor do ensaio O Escândalo da Distância. Uma Leitura d’A Montanha Mágica para o Século XXI, João Pedro Cachopo.

Dar a Pensar

«O que força a pensar são os signos», afirma o filósofo francês Gilles Deleuze em 1964 no livro Proust et les signes. Prossegue com «Aquele que busca a verdade é uma pessoa ciumenta que deteta um sinal enganador no rosto da pessoa amada. É o homem sensível que se depara com a violência de uma impressão. É o leitor, o ouvinte, na medida em que a obra de arte emite sinais que talvez o obriguem a criar, como o apelo do génio a outros génios. As comunicações de uma amizade tagarela não são nada comparadas com as interpretações silenciosas de um amante. A filosofia, com todo o seu método e boa vontade, não é nada comparada com as pressões secretas da obra de arte. A criação, tal como a génese do ato de pensar, parte sempre de signos. A obra de arte nasce dos signos tanto quanto os faz nascer; o criador é como o intérprete ciumento e divino que vela pelos signos nos quais a verdade se revela.»

Deleuze foi o primeiro a abordar filosoficamente a obra de Proust, fascinando-se e interessando-se pelos signos que revelam o que é o tempo, o abandono, a vaidade, a frivolidade, o egoísmo, o amor… À la recherche du temps perdu dedica-se mais, segundo ele, à inteligência do que à memória, trata-se de uma espécie de Bildungsroman, uma longa viagem de aprendizagem autorreferente, na qual, a par das descobertas do narrador sobre o sentido da vida na arte e na literatura, o próprio romance aprende a ser romance — algo a que não é alheio o exercício obsessivo de revisão. Por isso, la recherche deve ser lido como um jogo de signos que contém, quase secretamente, uma lógica dos signos, ou seja, uma lógica do sentido (Deleuze publicará Logique du sens em 1969). Não se trata de todo o sentido, bem entendido, mas de uma vasta parcela dos sentidos possíveis, compostos pela multitude quase pletórica de signos emitidos pelo romance. Aprender — que Deleuze gostava de descrever como uma tarefa de egiptólogo antes da descoberta de Champollion — consiste, então, em decifrar e interpretar signos, mesmo aqueles emitidos pelo não-dito.

Com esta perspetiva, Deleuze, o filósofo Deleuze, deixa bem claro que não há qualquer privilégio epistemológico inerente à filosofia. Tudo emite signos: as conversas banais do dia a dia, os filmes, as pinturas, os romances, a poesia, os animais, a natureza… E todos esses signos «dão a pensar» (expressão que Deleuze recupera em la recherche), pois são forças que investem o pensamento, nele penetram e produzem fulgurações luminosas. Luzes que aquecem, luzes que queimam, luzes que esclarecem, luzes que cegam.

Esta teoria dos signos desvaloriza a tradição filosófica do fundamento e do método, as linhas alemã e francesa, respetivamente. Os signos são instáveis e raramente funcionam isoladamente. Talvez por isso Deleuze tenha afirmado, numa entrevista a Claire Parnet, que «O interessante é o meio, não o início ou o fim». Ou, nas palavras de Jean-Luc Godard, «Pas d’image juste, juste des images» (traduzido, o meio desaparesseria). Assim, perde importância, mas não a beleza, o verso de Les fleurs du mal: «No fundo do Desconhecido para encontrar o novo!». Seja esse fundo «Inferno ou Céu».

No próximo ano, dediquemo-nos à potência do meio, deixando de lado os abismos do começo e do fim, tal como faz, de forma admirável, um órfão voluntário — que vive como um deus imperfeito entre os homens. Levemos a sério a máxima nietzschiana de sermos sempre outrosdu bist immer ein Anderer»). Para isso, basta cultivarmos uma arte da inservidão voluntária.

Enquanto Dormes

Enquanto dormes no meu colo, meu amor,

Que os sonhos te sejam leves e limpos,

O mundo continua demasiado humano,

Sujo e injusto, o progresso só tornou a maioria

Em insignificantes números, carne para canhão,

Contudo, com a tua mão sobre o lugar onde talvez

Ainda se esconda o meu coração,

Sinto que te sou seguro e por trás dessas pequenas

Pálpebras, o sonho decorre nesse teu mundo pequeno

E simples, que sejam borboletas, trevos no jardim da avó,

O raro sorriso do sol de inverno, gatinhos gregos,

Que nunca te contaminem os pesos e pesadelos

Que os homens aos homens se impõem,

Nascemos para poder pouco, meu amor,

A vida não tem sequer o valor da sua utilidade,

Nesta sociedade de gordos vampiros, buracos negros

Oligarcas, resta-nos um colo quente e um sono puro,

O sol e a promessa universal do derradeiro silêncio.

 

Turku

20/12/2024