Terceira Margem

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Poesia de Portugal e do Brasil

Editado por
Francisca Camelo
Bruno M. Silva
J. Carlos Teixeira
Vítor Teves

Prefácio de Pedro Eiras

 Enfermaria 6, Lisboa, novembro de 2019, 174 pp.

Capa de Gustavo Domingues

14€

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Para revelar o sabor das coisas, para saber o que já se sabia, não há regras, há apenas escritas, procuras, experiências e encontros, a muitas vozes e a muitas mãos – por exemplo, vinte e duas mãos de poetas e poetisas, entre Portugal e o Brasil, vozes que descrevem, revelam, diagnosticam as avarias na máquina do mundo, vozes que se enervam, ironizam, por vezes escondem a dor numa fuga em frente, vozes ríspidas, oníricas, ternas e lentas e velozes ao mesmo tempo, vozes imprevisíveis, que coincidem num mesmo presente e o multiplicam por outros tantos tempos, vozes, idiomas.

Pedro Eiras, “Como se revela o sabor das coisas”

 

Not taken

A cinza deslocando-se atmosfericamente contra o asfalto
dispersando-se como faísca, desaparecendo
como um prodígio que se afoga na floresta
por negar viver junto de sentimentos calados, fechados
na lei dos semáforos da madrugada.
Os faróis do carro passam por nós,
iluminando os pares observatórios no meio de tanta escuridão
tenho sono e sinto um pássaro no peito
quando a tua mão aperta a minha
quando o elevador é o lugar do nosso beijo
quando pedes para afagar o teu cabelo aparado.


The ash shifting atmospherically against the asphalt
dispersing as spark, disappearing
as a prodigy who drowns into the forest
to deny living together with quiet feelings, closed
in the law of traffic lights at dawn.
The car headlights pass us by,
illuminating the couple observatories in the midst of so much darkness
I sleep and feel a bird in the chest
when your hand tightens mine
when the elevator is the place of our kiss
when you ask to stroke your trimmed hair.


Temporizador

Se apostasses o teu salário do mês  
na minha sabedoria noturna  
compreenderias a probabilidade de insucesso  
nas mesas de jogo e nas roletas de casino  
bem como a astúcia de um quadril gordo  
subindo o degrau do autocarro urbano.   

No entanto tu não és de fé  
nem de contratos apalavrados  
e é por isso que nunca te levarei  
a ver como a lua se reflete frente ao mar  
despida  
durante a madrugada encostada à arriba.  
Porque tu não és de acreditar em uivos  
do oceano que conheces matinal  
nem de gastar o teu dinheiro inútil  
nas minhas palavras úteis
lançadas como dados por uma sorte  
que nunca será tua  
enquanto aqui estiver para ti: 
Espreitando no canto direito onde te sentas  
assaltando o bolso do blazer de família  
dormindo na gaveta da única cabeceira  
onde sei teres o livro dado pelo alfarrabista da tua melódica  
infância  
e o Le Locle que persiste em contrastar
com a tua camisa de flanela.

 

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