Na plataforma a iluminação era bastante ténue. A estas horas, com praticamente ninguém a sair na estação de Campolide (a maior parte das pessoas dirige-se para fora de Lisboa), o local tornava-se algo sombrio. Transmitia pouca segurança. Podia estar sempre alguém ao virar da esquina. Apesar disso, quando estava, era apenas mais uma pessoa à espera que o comboio passasse.
Habituado a passar aqui nestas condições, já nada sentia. Era para mim absolutamente normal estar ali àquelas horas e nunca nada de alarmante se tinha passado, pelo menos à minha frente. Sabendo isso, o medo desaparecia, ou pelo menos parte dele. Caminhei até ao final da plataforma como quem ia na direcção do Rossio e, não vendo ninguém, saltei para a linha. Não havia perigo em andar na linha a estas horas. Ainda faltava algum tempo até ao próximo comboio chegar. Podia dormir uma sesta de alguns minutos na linha que ainda tinha tempo de acordar e me levantar sem o comboio ter passado.
Tinha agora à minha esquerda o armazém de comboios da Estação de Campolide, onde estavam paradas as carruagens, nunca novas, algumas renovadas e em funcionamento, outras antigas e abandonadas. Caminhando paralelamente à linha, procurava o local certo para saltar a rede que separava essa zona da comum linha ferroviária. Andei alguns metros, sempre a olhar para trás, com medo de que me vissem. Quando cheguei a uma zona sem iluminação e, ao olhar para trás, não vi ninguém, decidi escalar a rede e saltar para o outro lado.
Muitos comboios não estavam dentro dos armazéns, provavelmente havia mais do lado de fora, até. Encostado à vedação estava um de dois andares, pintura de base branca e com duas riscas de lado, uma verde, maior, e outra vermelha, mais pequena, paralela e sob a verde. Um dos primeiros comboios de dois andares a circular nos suburbanos de Lisboa, estreado em 1999, agora abandonado. Problemas técnicos era a causa mais provável. Actualmente circulam uns iguais, mas de cor vermelha. Graffitis, das mais variadas cores, cobriam o branco. Mesmo com duas filas de janelas de cada lado, mal se viam por estarem cobertas de pinturas.
Andando até ao final das carruagens, passei para o lado paralelo ao que estava junto à rede, com um comboio a separar-me da plataforma. Andei até à segunda carruagem deste mesmo comboio e parei na primeira das portas. Na união das duas portas havia uma pequena fresta que, com a ajuda de um pau relativamente pequeno que encontrei no chão, me permitiu separar um pouco as portas para entrar dentro do comboio. A porta, preparada para estar à altura da plataforma, ficava algo alta em relação ao chão. Noventa centímetros, talvez um metro mesmo. Com a ajuda dos braços, consegui içar-me lá para dentro. Tendo um metro e oitenta, a altura da porta não era grande problema.
Dentro da carruagem a escuridão impedia que se visse grande coisa. Por muito que a luz tentasse entrar pelas janelas, os graffitis impediam que a pouca luminosidade que existia no exterior passasse. Com a ajuda de uma lanterna que trazia comigo, era capaz de ver lá dentro. Tinha era de ter cuidado em não apontar a luz para as janelas, caso contrário podiam notar a minha presença. Conseguia agora ver as escadas que, do espaço de entrada na carruagem, permitiam ir para os dois andares do comboio. Subindo as escadas e avançando até ao final do corredor ladeado por bancos, desci as escadas para alcançar o átrio do outro lado da carruagem.
Um colchão no chão, encostado à parede. Nessa parede, um corredor com uma porta fechada para a carruagem seguinte. Nesse corredor umas malas. Nessas malas, sei lá, um milhão de coisas. Era provavelmente quase só roupa.
Era aqui que dormia.