Idades do pensamento

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O título é pomposo, excede o que posso dizer sobre o que representa. É, pois, um mau título, leva ao engano criando falsas expectativas. Mas é um belo título, ou pelo menos assim o considero.

Nesta injunção antagónica emerge uma parcela importante da história da humanidade, resumida na pergunta: importa mais a beleza ou a verdade? Sabemos que as vagas religiosas, depois dos politeísmo festivo e antropomorfismo descarado da Grécia Clássica, hipertrofiaram outro pilar civilizacional: o do bem.

Temos, assim, o belo, a verdade e o bem (que Platão, esse grego desnaturado de uma rara lucidez, acrescentou sem dilemas ao mundo do luxo racional e sonho antropológico a que chamou Ideias). Eu, por pudor espiritual e experiência rasteira de vida, consigo facilmente evitar olhar para a realidade com os óculos do bem (embora me interesse a “common decency” de Orwell) e coloco cada vez menos os da verdade (uma palavra que exalta mais do que harmoniza, que serve melhor estratégias políticas e religiosas do que a ciência ou as boas dialécticas argumentativas).

Restam-me, então, os do belo, e é com eles que formato agora grande parte do meu pensar. Penso para encontrar o belo em cada coisa que leio, que ouço ou que vejo. Em cada coisa que vem do exterior ou do interior. De cima (das alturas inauguradas por Platão) ou de baixo (da espontaneidade, tantas vezes considerada espúria, do dia-a-dia). Até nas ilusões restropectivas ou nessa coragem líquida que é o álcool.

O objectivo, que só recentemente consegui exprimir (é incrível como podemos sentir intensamente uma perspectiva sem o suporte das palavras), embora esteja ainda longe de qualquer explicação mais elaborada, é, como em Georges Perec, procurar simultaneamente o eterno e o efémero (“Je cherche em même temps l’éternel et l’éphémère”, escreve). Até recentemente, acreditei que só os conceitos podiam alcançar a vastidão do tempo (o universal), ficando o temporário a cargo do discurso rotineiro feito de cem palavras que todos percebem. Mas não, terá de ser um dispositivo de linguagem, verbal ou outra, que, a partir do belo, crie uma nova cabeça de Janus, de um lado olhando para o efémero, do outro para o eterno.

Genial complexidade que, paradoxalmente, só se adquire passando por uma genial simplicidade. Nada que tenha que ver com a vontade heróica, é antes uma questão de idade do pensamento. Que não segue, desenganem-se os que romantizam o envelhecimento, a idade cronológica. Trata-se de uma condição adquirida depois de habitar à vez no obscuro e no claro, sempre um pouco por acaso (“Não é meia noite quem quer”, dizia René Char em mais um dos seus belos truques retóricos, socorrendo-se da imunidade artística concedida aos poetas).

Para 2020

Paul Klee

Paul Klee

Para 2020, “torna-te o que és”!

Esta máxima, atribuída a Píndaro, está perfeitamente enquadrada na sabedoria apolínea, irmã, por exemplo, do célebre “conhece-te a ti mesmo” délfico (que o Sócrates de Platão tão bem ilustrou). Ela será retomada por Nietzsche, destacada no subtítulo do seu último livro, Ecce Homo: Wie man wird, was man ist (como vir a ser o que se é)

Para este pensador (nunca tremo ao designá-lo assim), todas as antropotécnicas são válidas para virmos a ser o que somos, não no sentido heideggeriano de uma autenticidade metafísica que substitua, e supere, as formas de ascese religiosa, mas como encontro do impessoal que até certo ponto governa a nossa pessoalidade (considerada, com muita imprecisão, o “eu”). Mas não será Nietzsche o inventor do eremitismo heróico moderno, que em vez de esvaziar a subjectividade a amplifica até ao estouro? (Übermensch = super-homem) Não, essa é apenas uma velha e desajustada forma de o ler. Se lhe prestarmos a devida atenção, partindo, por exemplo, do que escreve em Assim Falou (ou Falava) Zaratustra, o sujeito é a soma de uma ficção linguística com um dispositivo religioso para manter viva a ampla economia da culpa e do ressentimento. E mesmo quando confrontado com aquilo que pouco tempo depois dele dirá Freud (afirmava não o ter lido seriamente porque temia descobrir que o plagiava), resiste coerentemente à tentação de tudo, ou quase tudo, convergir para o eu (em Freud, deve-se escavar o inconsciente e enchê-lo de uma consciência cada vez mais plena, pessoalizar o impessoal). Em Nietzsche, o devir individual (um tornar-se que nunca se conclui, dinâmica assimptota) conduz, por linhas mais travessas do que direitas, ao “si” (Selbst), em Freud, com a ajuda do psicanalista nos casos mais difíceis, ao ego.

Bom, mas então como e para quê tornarmo-nos o que somos?

Como: buscando a base da estrutura orgânica, as forças construtivas e destrutivas (nisto, Nietzsche e Freud coincidem) que alimentam a nossa passagem por aqui (estamos, quer queiramos, quer não, sempre num devir inexorável). Não ser de nenhum lado (o nacionalismo é tão arcaico que custa acreditar na sua sobrevivência), não ter nenhum nome. Os caprichos individuais substituídos pela biologia do sistema respiratório. Venerar também o inorgânico que somos, até porque essa será a nossa condição dominante futura.

Para quê: para amarmos outras coisas para lá de nós próprios, amá-las verdadeiramente, não como fazemos agora em modo boomerang. O verdadeiro amor só pode ser incondicional, e por isso acontece apenas em relação ao distante, ao mais distante possível. Não cabe nele, com certeza, o amor paixão (invenção recente) ou o familiar. Não cabe também, embora se aumente a distância, a amizade. Nem qualquer neo-humanismo. Começa a ocorrer no amor por outras espécies e outras formas de vida. Aproxima-se quando chegamos, por exemplo, ao reino mineral (em pura contemplação). Intensifica-se se amarmos uma estrela, não porque nos ilumina, mas porque a amamos em si mesma sem querer nada em troca. Finalmente, fica pleno quando amamos o nada. Aí tornamo-nos aquilo que somos, já que as forças afirmativas que nos compõem se libertam de qualquer resquício narcisista e aceitam, sem conflitos, patentes ou latentes, que também nós somos nada, a máxima potência da impessoalidade.

Claro, com isto vou contra a epistemologia, a ética, a política, a economia... Enfrento todo o magnífico senso comum que nos governa, sobretudo nos fins de ano. Mas enfim, ninguém se dará ao trabalho de me lançar bombas incendiárias.

Para quem vir aqui uma qualquer forma de niilismo, parabéns, acertou. Mas cuidado, é o niilismo completo de Nietzsche. Que na altura combatia o grosseiro fetichismo da importância última do eu, do eu acima de tudo, a derradeira hipertrofia do eu. Alimentado e exacerbado na viagem que nos trouxe dos primórdios da consciência até aos glutões do Planeta. Como pensava Nietzsche, à morte de Deus deveria seguir-se a do homem, desde homem, para que o sobre-homem possa surgir, até porque só ele conseguirá, verdadeiramente, amar o distante. Pelo contrário, sem superação do humano, as actuais sociedades imunitárias tenderão a ser governadas pelo absurdo, cheias de querelas de egos e de sem-sentido, festa da autodestruição.

Anne Sexton, "Disse a poetisa ao analista"

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Tradução: João Coles


O meu ofício são as palavras. As palavras são como rótulos,
ou moedas, ou melhor, como um enxame de abelhas.
Confesso a minha ruína pela origem das coisas;
como se as palavras fossem contadas como abelhas mortas no sótão,
despojadas dos seus olhos amarelos e das suas secas asas.
Devo sempre esquecer como uma palavra é capaz de escolher
outra, influenciar outra, até obter
algo que pudesse ter dito...
mas que o não tenha dito.

O seu ofício é examinar as minhas palavras. Mas eu
não admito nada. Faço o meu melhor, por exemplo,
quando consigo escrever um encómio a uma caça-níqueis,
como naquela noite no Nevada: contar como o mágico jackpot veio a tilintar
com três sinos no ecrã da sorte.
Mas dissesse o senhor que isto é algo que não é,
então esmoreço e lembro-me de como senti as minhas mãos tão estranhas
e ridículas e lotadas com todo aquele
dinheiro crente.


Said the poet to the analyst

 My business is words. Words are like labels,
or coins, or better, like swarming bees.
I confess I am only broken by the sources of things;
as if words were counted like dead bees in the attic,
unbuckled from their yellow eyes and their dry wings.
I must always forget how one word is able to pick
out another, to manner another, until I have got
something I might have said…
but did not. 

Your business is watching my words. But I
admit nothing. I work with my best, for instance,
when I can write my praise for a nickel machine,
that one night in Nevada: telling how the magic jackpot
came clacking three bells out, over the lucky screen.
But if you should say this is something it is not,
then I grow weak, remembering how my hands felt funny
and ridiculous and crowded with all
the believing money.

a felicidade efémera de antífon, pintor de vasos ateniense, ca. 490 a.C.

Vaso de figuras vermelhas, ca. 490-480 aC, oriundo da Ática e encontrado em Orvieto. Atribuído ao pintor Antífon. Hoje no museu Ashmolean, em Oxford.

Vaso de figuras vermelhas, ca. 490-480 aC, oriundo da Ática e encontrado em Orvieto. Atribuído ao pintor Antífon. Hoje no museu Ashmolean, em Oxford.

a partir de C. P. Cavafy

pistachos e solidão
enchem a oficina do chão ao tecto
durante as noites de outono
lá fora a chuva que cai a cântaros
dá cabo dos nervos e é
uma forma de medir o tempo
humilde no escuro como uma romã
e escuridão é o que atravessa o vermelho
das sementes derrubadas sobre a mesa
e alguma espécie de má sorte
tem-me acordado toda a noite
rumino lentamente tudo o que me preocupa
inutilidades banais disputas com outras artesãos
todas as parvoíces que não me deixam
fazer o meu trabalho em paz
e conto as minhas pequenas alegrias
elas deixam-me sempre perplexo
as suas sementes semeio-as no escuro
elas contêm a noite e vão
um dia talvez chegar à primavera
que chegará muito depois
de eu ter deixado
os tigres caminharem sobre o meu peito
sem razão
também no que parece ser escuridão
um negro absurdo e absoluto
farei iluminar a sua figura que agora me foge
ao centro sentado absorto no seu trabalho
o seu nome e o meu hão-de desaparecer
e esse esquecimento
outra forma de alegria
será o selo do nosso segredo
mas ele será ainda mais esquecido do que eu
porque é ainda mais efémero o seu trabalho
os meus traços sobre a superfície
farão o seu rosto a princípio parecer
mais indefinido
e de mim será dito que preferi sempre
pintar nos vasos
cenas com rapazes aristocráticos atenienses
e batalhas míticas para
serem vistas e adoradas em banquetes
por ainda mais rapazes
aristocráticos atenienses
cenas onde se pode observar
os mais respeitáveis heróis gregos
os mais sangrentos mitos da grécia
os arqueólogos notarão
que são poucas as mulheres
que surgem nos vasos onde se pode reconhecer
a minha mão, a mão por que será reconhecido o meu nome
que não será já o meu nome
mas o nome que outros me terão dado
em virtude de serem reconhecíveis os meus traços
os meus padrões, mesmo na solidão de mínimos cacos
nas imagens que ficarão perdidas para sempre
elaborados pormenores deixarão
emergir o meu verdadeiro nome
e que se entenda que foi meu o meu trabalho
que este trabalho
por certos pormenores se fez famoso
e não há nada de errado
em um artesão capaz querer viver
em paz
da sua arte
com uma certa dignidade
mas não nesta noite
e não para o trabalho deste vaso
que será descoberto muito longe de onde
se passou esta cena e esta cena devia
ela própria ser efémera
nem tu pensarás de imediato
em páginas saídas da história
em gente como dario ou xerxes ou nos anos
em que os malditos persas
atravessaram o helesponto
para nos darem o inferno em atenas

este jovem que não é nem aristocrata
nem efebo mítico nem terá nome
ficará assim pacientemente sentado
diante do capacete que foi o seu trabalho
esculpir de uma só peça
atento, quase imóvel, quase vencendo o tempo
à velocidade de uma corrida mortal
a sua mão alonga os gestos
que terminarão o trabalho que não é o meu
esta intenção opressiva esculpida no bronze
a força desta leveza quase luz fazendo inchar o peito
até ao transporte final das imagens através da escuridão
transformadas em incêndio e pelo fogo visíveis
antes queria não ter sabido nada disto
queria tê-lo deixado dormir quieto na oficina
entre os pistachos e as romãs
aconteceu então
embora eu não o tivesse entendido
que foi minha uma coisa breve do mundo
de repente um rosto reconhecido
e esta outra arte mais difícil de dominar
muito dificilmente conquistada
aquilo que aqui se pode ver agora
uma efémera lei do caos, indecifrada

Tatiana Faia, Oxford
30 de Setembro de 2019