Breves notas sobre poesia contemporânea portuguesa #1: Espigueiro, de Mafalda Sofia Gomes, do lado esquerdo (2019)

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Espigueiro de Mafalda Sofia Gomes é um livro breve e desconcertante. A sua força resulta da encenação das ocasiões desse desconcerto. O objecto dos poemas de Espigueiro são as relações entre homens e mulheres (com os seus equilíbrios e desequilíbrios: de poder e dominação, igualdade e desigualdade), estereótipos de género, tal como entrevistos em poemas sobre a educação de raparigas e rapazes, a afirmação e repressão do desejo no feminino, as vozes que são concedidas a mulheres anónimas ou que lhes são cirurgicamente retiradas. A este último propósito há um poema intitulado “Cozinha” que, dando a voz a um marido que nunca se nomeia como tal (“a minha mulher” é a expressão pela qual ele se define e identifica), é, no entanto, um pequeno tratado de crueldades diárias que, chegando ao último verso, tem o efeito de nos gelar o sangue, escondida e sancionada como esta voz nos chega por uma vox populi que é velha de séculos.

Espigueiro fala de outras coisas, por exemplo, do modo como as próprias mulheres acabam a dar voz e a perpetuar os preconceitos que sobre elas pairam. Leia-se um poema como “Doutrina:” “A minha avó usa vestidos por baixo da roupa/ porque aprendeu que as mulheres se medem às camadas,/ afinal, a moral terá tantos casacos quanto cadeiras/ para nos sentarmos de pernas fechadas,” que incisivamente nos recorda que o matriarcado é por vezes instrumental para a manutenção do patriarcado. Há um outro poema que nos fala de como esta violência se perpetua, faz parte de um ciclo que começa cedo, que se alimenta de alienação, ignorância, insegurança e desamor e perdura por gerações, não servindo ninguém. Em “Ontem, hoje e amanhã!” do ciclo “Mediação,” encontramos estes versos “Aos quinze anos/ deste um estalo à tua namorada/ e chamaste-lhe puta/ porque as mamas lhe cresceram tanto/ que não cabiam nas tuas mãos// não fossem elas caber/ noutras mãos que não as tuas.”

Esta violência, não é, no entanto, representada apenas como prerrogativa do sexo masculino. Um dos poemas mais inquietantes do livro intitula-se “Bons fils, cher fils, beau fils” e, numa alusão ao romance medieval Parzival de Wolfram von Eschenbach, retrata a obsessão de uma mulher por uma criança do sexo masculino, no que pode ou não ser um eco do romance, num poema que é uma exploração inquietante das relações entre ética e estética em poesia. O diálogo deste poema talvez não seja tanto com a tradição medieval a que se reporta, mas, por exemplo, com certos poemas de Cavafy, Morte em Veneza de Thomas Mann, Lolita de Nabokov e certos contos de Anaïs Nin.  

Digamos então que o desconcerto que pontua as relações sociais que são representadas em Espigueiro vem da desigualdade que caracteriza relações entre homens e mulheres, o que poderia ser descrito sob o rótulo de violência do patriarcado, mas algo neste livro aspira a uma liberdade primordial das mulheres que vem antes de imposições de normas culturais (veja-se um poema como “Iogurte Grego”). O humor (negro) que pontua aqui e ali o livro é também um exercício dessa liberdade e uma forma de resistência que se manterá necessária para desencorajar que, por exemplo, propostas para leis para tornar legal retirar a mulheres os seus ovários, no caso de elas decidirem abortar, não atraiam, num congresso de um partido de extrema direita num país da Europa no século XXI, o voto de mais do que 38 maníacos (que talvez fosse também o voto de maníacas, não sei ao certo, mas ridendo castigat mores, escreveu um homem francês algures no barroco, máxima de que também Gil Vicente gostava).

Esta constante impressão de desequilíbrio entre géneros sublinha-se no estilo que dá forma ao livro: a preferência por métricas e rimas tradicionais, por expressões que parecem saídas de um inventário de frases feitas de uma sabedoria popular (vejam-se as primeiras linhas do poema de abertura, “Verdes Anos:” “Os que cheiram a cevada coada na alvorada/ aprenderam cedo as artes da boa peneira”), que parecem situar esteticamente o universo poético de Espigueiro num mundo de referências literárias que pode ser encontrado não entre discursos vanguardistas mas entre duas balizas cronológicas bem mais anteriores, a da literatura medieval e a de ecos de um certo romantismo que aqui funciona não tanto como categoria sobre a qual agrupar um nexo de influências literárias, mas enquanto paisagem cultural que fala de um Portugal onde as relações entre géneros ainda carregam as ressonâncias destes pontos de referência cronológicos.

Há, num certo lado rural de Espigueiro, uma ambiência que parece olhar para trás, para o mundo do Almeida Garrett de Viagens na Minha Terra, de Júlio Dinis, de Alexandre Herculano. Mas a ruralidade de Mafalda Sofia Gomes é urbana, tem muito mais que ver com a ruralidade urbana de um António Variações, e o que em Espigueiro denota o facto de que a formação de Mafalda Sofia Gomes é em literatura medieval, mais especificamente a alemã, pede a apreciação de que, pelo menos para efeitos da poética deste livro, em termos de conteúdo, se não de estilo, o mundo medieval que é aqui referido pertence também a uma certa forma de vanguarda que às vezes o movimento de certos jovens poetas em direcção às retaguardas de um cânone denota: tem muito mais que ver com o tratamento que Adília Lopes faz desse mundo na sua poesia do que, por exemplo, o uso que dele faz o explicitamente mencionado Pero Garcia Burgalês.

Adelaide Ivanova, que assina o posfácio, diz-nos que os poemas de Espigueiro não julgam o leitor (p. 60) e que o livro não nos oferece “nenhuma resposta concreta acerca das questões que levanta” (p. 59). Estas duas afirmações talvez mereçam alguma reconsideração. A propósito de os poemas não julgarem o leitor, leia-se, por exemplo, um poema como “Blandina” sobre a figura homónima, martirizada em Lyon no século II d.C., em que com o seu vocabulário ambíguo, entre o martírio e o êxtase, põe o leitor na posição de ouvinte desse monólogo e espectador desse martírio, tornando a ideia de martírio numa metáfora mais ampla para o modo como o corpo feminino é explorado e aniquilado num ritual voyeurístico pela afirmação da sua beleza, do desejo que carrega com ele. Há algo neste poema que convida a que o leiamos quase como uma reescrita de “Cogida y Muerte” de Lorca, e que o torna um dos poemas com um dos ritmos mais certeiros e belos escritos pela jovem poesia portuguesa recente.  A propósito de os poemas não sugerirem qualquer “resposta concreta acerca dos problemas que levantam” veja-se um poema breve, como “Universais” (p. 26) que é um dos poemas do livro mais explicitamente preocupado com questões de arte poética e que é um poema-provocação, em que se lê: “O José Carlos/ não gosta do verso/ agora não sou/ ninguém/ será que o José Carlos/ que não é um Zé Ninguém/ já pensou no Ulisses no Romeiro/ e não aceita que/ uma mulher seja universal/ como um homem que/ se tenha perdido no mar.” A conclusão, que atribui às mulheres o espaço da praia e o trabalho das lágrimas, parece afirmar, no entanto, que este é um outro cânone, tão válido como o de Ulisses e do Romeiro, num jogo duplo com a ressonância do que significa um homem ser ninguém (Ulisses na gruta de Polifemo, fazendo uso da sua astúcia) ou uma mulher, o que bem vistas as coisas serve para sublinhar a existência deste outro cânone, a sua validade. A este poema têm de se somar outros dois: “O que diria Hildegarda von Bingen? A propósito da extinção das casas religiosas femininas em Portugal,” que no que tem de encenação da vida em isolamento de uma mulher, leva-a a concluir que vive numa época em que “deus já não manda mensageiros.” Ela, no entanto, cumpre a sua rotina, testemunha silenciosa e cronista escrupulosa da sua própria vida (“Quando acordo/ vou muito direita ver se o pavio ainda arde...”) É este “muito direita” que aqui me importa sobretudo. Hildegarda von Bigen, santa do século XI, é afinal uma das figuras fundacionais da cultura germânica, e é também neste livro a última testemunha solitária da existência de um tempo em que mulheres viveram em comunidades exclusivamente compostas por mulheres numa época anterior à modernidade, o que para o leitor de Espigueiro é uma forma de provocação mas também um modo de lembrar que estas experiências sociais existem, pelo menos tanto quanto, por exemplo, os clubes exclusivamente masculinos de Londres existem. Nesse sentido, esta Hildegarda de Mafalda Sofia Gomes pertence e acrescenta algo a discursos sobre vidas de mulheres que estão na mesma tradição cultural recente de um filme como Retrato da Rapariga em Chamas de Céline Sciamma (2019), são exercícios que encenam e questionam questões de igualdade e autodeterminação. No caso da Hildegarda que fala neste poema aponta-se no entanto para as limitações deste tipo de experiência social: é um mundo algo estéril e mergulhado no tédio aquele em que os géneros não coexistem. Mas se para um livro de poemas não ser cínico ele tem de dar alguma resposta aos problemas que levanta, talvez a de Mafalda Sofia Gomes venha nos últimos versos do último poema, “Menarca:” “gosto que as mulheres vivam/ inteiras vertidas/ convertidas/renovadas” – condição sine qua non para que um corpo social, todos os géneros e identidades incluídas, funcione enquanto tal.

"Vertigem", de Ada Negri


 
 


Tradução: João Coles



— Cala-te, cala-te

(mulher, assim nos seus braços
deliraste uma noite)

— cala-te, cala-te,
não profanes
com palavras envelhecidas pelos séculos
a novidade selvagem
deste momento.
Novos somos
e livres de qualquer proibição
e jovens como virgultas
no Março agreste.
Deixemos atrás daquela parede
os anos vividos, as lutas
vencidas, as ruas calcadas
a sangue, e os rostos fiéis,
e os sonhos e as obras,
e aquilo que parecia a nossa
razão e o nosso porquê
de sermos vivos.

E agora aqui não existem
senão a tua força solar
e a minha fluída graça,
senão o inflamar do teu sangue
e a tua boca que não se sacia;
e o meu rosto desfalecido
não é o que outros já viram,
mas que em ti se fixa, que em ti conflui,
na sua linha trágica,
na sua pulsante lividez,
é o rosto imortal do amor.

**

— Cala-te, cala-te

(mulher, assim nos seus braços
deliraste uma noite)

— nenhuma palavra
consegue proferir o milagre,
nenhuma música
consegue exprimir o êxtase,
só o fragor das tuas artérias,
só o arrepio dos meus pulsos.
Viva ontem não estava,
morta estarei amanhã,
destruída pelas tuas
mãos. Aperta-me, como se, presos um ao outro
à beira de um cume
por nós apenas conhecido,
tivéssemos de nos precipitar no vazio.


In, Il libro di Mara, Fratelli Treves Editori, 1919


Vertigine

— Taci, taci,

(femmina, nelle sue braccia
delirasti una notte così)

— taci, taci,
non profanare
con parole vecchie di secoli
la novità selvaggia
di questo momento.
Nuovi noi siamo
e liberi d’ogni divieto
e giovani come virgulti
neII'aspro marzo.
Lasciammo dietro quel muro
gli anni vissuti, le lotte
vinte, le strade calcate
a sangue, ed i visi fedeli,
e i sogni e le opere,
e quel che ci parve Ia nostra
ragione ed il nostro perchè
d’esser viventi.

Ed ora qui non esistono
che Ia tua forza solare
e Ia mia fluida grazia,
che l’avvampar dei tuo sangue
e Ia tua bocca che non si sazia;
ed il mio volto riverso
non è quello che altri già vide,
ma in te fiso, in te converso,
nella sua tragica linea,
nel suo pulsante pallore,
è l’immortale volto dell’amore.

**

— Taci, taci,

(femmina, nelle sue braccia
delirasti una notte così)

— nessuna parola
può dire il miracolo,
nessuna musica
può esprimere l’estasi,
solo il rombo delle tue arterie,
solo il brivido de’ miei polsi.
Viva non ero ieri,
morta sarò domani.
distrutta dalle mani
tue. Stringimi, come se, avvinti
sull’orlo d’un culmine
a noi sol noto,
precipitar dovessimo nel vuoto.

In, Il libro di Mara, Fratelli Treves Editori, 1919

Paisagens em estado de possibilidade sem limites: "Behind the Horizon" de Alexandra Roussopoulos

Behind the Horizon
Alexandra Roussopoulos
Galeria Nitra
Atenas
26 de Setembro a 24 de Novembro

1.

Este é um breve texto sobre alguns quadros de Alexandra Roussopoulos, vistos numa pequena galeria num dos bairros centrais de Atenas. Às vezes, parece-me que darmos por nós na presença de certas imagens convida um certo tipo de atenção silenciosa, que deixa que uma sucessão de coisas que estão enterradas dentro de nós venham à superfície, se tornem de repente objectivas ou objecto de (re)descoberta. Este ciclo de quadros revela o lado ao mesmo tempo familiar e estranho de algumas paisagens e dos seus horizontes. Podiam ser as nossas paisagens, daí apontarem acidentalmente para os nossos elos com certos lugares. A objecção que se pode levantar a esta ideia, claro, é a de que estou aqui a propor uma empatia egoísta em relação a certos objectos de arte. Que talvez haja nisto um certo romantismo imaturo. Talvez, um pouco. E então?

2.

Em Março de 2020, Alexandra Roussopoulos, uma pintora suíça e francesa de origem grega, radicada em Paris, viajou para Atenas para preparar uma exposição que deveria ter tido lugar nesse mês, mas que só veio a acontecer, na forma em que agora se vê, no final de Setembro. Alexandra Roussopoulos viu-se confinada ao seu estúdio em Atenas, sem poder viajar de regresso a Paris e sem saber quando esta exposição que agora se pode ver na Galeria Nitra, em Atenas, ia acontecer. Nas semanas seguintes a pintora lançou-se ao trabalho de compor os quadros que hoje formam o conjunto da exposição Behind the Horizon. Alexandra explica ao diário grego Kathimerini que teve de alterar a sua técnica de pintar à medida que as semanas foram passando, por receio de que os materiais que tinha encomendado se esgotassem. Há nas imagens uma qualidade de erosão, que sugere o lado fugaz e efémero de paisagens vistas a partir de dentro, desconstruídas e de novo montadas a partir da memória.

3.

Os quadros de Behind the Horizon ocupavam quatro paredes na galeria Nitra. Lá fora, no final da tarde de sábado, atenienses bem-vestidos circulavam pelas ruas interiores de Kolonaki. Homens em jeans e sapatos caros cortando pelas estradas nas suas vespas e pequenos grupos de estudantes com encontros marcados em esplanadas em redor de pequenos jardins urbanos. Por um momento, entre amigos nestas ruas interiores, esqueço-me deste ano, da impressão que carrego, de há meses, que a terra está doente. A irmã da amiga que me trouxe para ver esta exposição está a estudar para se tornar pintora, o que na Grécia, antes de se entrar na faculdade, não corresponde a qualquer educação formal. Um aspirante a aluno de Belas Artes estuda aqui e ali com quem puder, até fazer o exame de admissão à universidade. Há poucas vagas e é muito difícil de entrar. A irmã da minha amiga vai vendo exposições aqui e ali, tirando notas, falando com outros pintores, numa espécie de educação amadora que na verdade traduz a impossibilidade de ensinar alguém a ser essa coisa, um pintor. Explico à irmã da minha amiga que me agradam as pequenas galerias. Concordamos que são espaços que estendem uma espécie de convite. Há uma liberdade muita grande em entrar e sair de pequenas galerias, sem ter de pagar entrada, sem explicar ao que vimos, em certo sentido a antítese de museus. No trabalho novo há um lado experimental que é também o de ver algo pela primeira vez, sem saber o que esperar. Há nisso outra forma de liberdade: do peso da tradição, dos nossos próprios preconceitos e expectativas.

4.

Não contei ao certo quantos quadros Alexandra Rossopoulos pintou no seu confinamento ateniense. Creio que talvez entre oito e dez. Os quadros sugerem que o que fica atrás do horizonte, o título que enquadra a exposição, são sedimentos e sedimentos de paisagens que se foram tornando na memória da pintora: fragmentos que foram sendo justapostos até se tornarem às vezes estruturas que nos fazem pensar em fino gelo e no lado tridimensional e esquemático das paisagens, ou que, noutros quadros apontam para a representação da suavidade de cores de certos entardeceres em dias longos de verão.

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Nenhuma das paisagens é urbana, embora uma ou outra sugira essa possibilidade nos volumes que se avistam no horizonte. Há qualquer coisa de difusamente reminiscente de Turner, mas também de Hokusai. Há horizontes em certos quadros que parecem pertencer a um passado profundo, superfícies de infância vistas por um olhar adulto (isto parece-me sobretudo verdade acerca de uma paisagem de montanha e floresta onde se veem escuras árvores), o que, por outro lado, nos faz pensar na distância a que a memória segura certas passagens – com um certo anoitecer que é o tom em que a lembrança persiste face ao esquecimento, apoiando-se em alguns pontos salientes.

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Outros horizontes são claros e abertos e o movimento do olhar do plano da terra para o horizonte faz-nos pensar no que está para lá dessa distância enquanto meta, enquanto futuro: paisagens em estado de possibilidade sem limites. Porque não são paisagens humanas, as destes quadros, a sua presença em frente do nosso olhar parece não pedir nada de nós, mas antes sugerir a possibilidade de que nos podemos perder numa vasta paisagem que, no entanto, mesmo com os seus pormenores dissonantes, parece sempre acolhedora, possível de navegar. Há no exercício de olhar os quadros de Behind the Horizon algo de profundamente libertador, fora do tempo e fora das circunferências que, para lá dos confinamentos, habitamos. O conjunto de Behind the Horizon recorda-nos que o tempo da terra é outro tempo: silencioso, vasto, misterioso, em certo sentido fora da história, que é preciso respirar com essa história paralela do planeta, que coexiste com a nossa. Pontos de referência, coordenadas parecem refazer-se de quadro para quadro, reorganizar-se constantemente na sugestão da possibilidade de movimentos com que estas paisagens poderiam ser cruzadas. Mas, abarcando amplos espaços, mesmo nas mais pequenas telas, é o próprio movimento das paisagens que gera essa impressão: o que nestes quadros se move acompanha o nosso movimento interior em direcção à memória das paisagens que carregamos connosco. Há aqui qualquer coisa de uma paixão silenciosa, paradoxalmente premeditada, mas constante e resoluta.

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5.

Os meus três quadros preferidos são quase miniaturas. Três fragmentos de paisagens marítimas em três entardeceres diferentes, o último é um fragmento da rebentação. Talvez a mesma paisagem vista de diferentes ângulos, a diferentes horas. Não podendo dizer ao certo se se trata de perspectivas diferentes sobre a mesma paisagem, ou três paisagens diversas, sugere-se ao mesmo tempo o que disso no princípio: a familiaridade das paisagens e a sua estranheza. Os diferentes tons apontam para o modo como o transcorrer das horas sobre um determinado horizonte pode traduzir um sem número de emoções. Vastas paisagens, mesmo se apenas representadas em fragmentos, pintadas durante um período em que confinamento se tornou a obsessiva palavra chave de todos os vocabulários, sem nenhuma narrativa fixa, lembrando-nos que a amplitude do horizonte é como sair para fora, como regressar à possibilidade de encontro constante com algo em estado de recomeço.

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Nota: Gostaria de agradecer a Alexandra Roussopoulos a disponibilização das fotografias dos quadros que podem ser vistos nesta nota.

Ministro da Educação, o pequeno deus vingador

Hoje vou escrever sobre o actual Ministro da Educação da República Portuguesa. Parece forçado expor um Ministro, ainda que da Educação (mas não muito), na Enfermaria 6. Habituamo-nos a outras personagens, mais vertiginosas e inspiradoras, mas enfim, para o bem e para o mal, ele comanda o sistema ministerial (mamuteano, sem qualquer desprimor pelo magnífico animal que desapareceu da vida, pesado, burocrático e confuso) responsável por formar a futura legião de leitores. E é de leitores que mais precisamos.

Acontece que numa entrevista à Revista Visão o senhor Ministro, além de propagandear velhos chavões, como o direito dos alunos à brincadeira (algo que já entrou alegremente na própria sala de aula), ou os previsíveis 100 000 computadores para alunos e professores “ainda durante o primeiro período” (esperar para ver), disse que uma Diretora de Agrupamento de Escolas tinha sido negligente na contratação de professores. Sem entrar nos pormenores da acusação (ao nível do estilo de quem nunca “quer perder uma discussão”, como referia um companheiro do Ministro acerca do seu desempenho nas noitadas dialécticas de Coimbra), quem está mais ou menos ligado à educação não superior em Portugal sabe que em certas zonas do país, sobretudo Lisboa, não há candidatos suficientes para as vagas.

Numa metáfora que deve ter recuperado dos seus combates semióticos, o Ministro lá reconheceu que em relação à contratação de professores a “mão e a luva não encaixavam perfeitamente”, mas, em bom jogador dialético, só o fez depois de pôr na Diretora a marca, creio que indelével, de “negligente”. E pronto, temos, com certeza, um Ministro contente por ter vencido mais um combate hermenêutico, ainda que não tenha acontecido porque interpretou melhor a realidade, mas porque esmagou um adversário que ele próprio, dentro do ilogismo político, criou.

O que acabo de dizer serve, adequando-me agora ao nosso contexto mais literário, outro propósito: testar o carácter trágico do Ministro Tiago Brandão Rodrigues. Sabemos que Édipo queria saber tudo a todo o custo, para com isso dominar os outros e o mundo, como dominava Tebas (um déspota esclarecido, no fundo). Mas claro, o mundo também era dos deuses, e eles tencionavam manter o seu predomínio epistemológico e dramatúrgico. Daí que a insolência humana, na verdade bastante manipulada por eles (foliões, ao contrário dos cristãos), fosse castigada sem restrições de crueldade. Ora, Tiago Brandão da Luz não quer saber tudo (estamos na era da pós-verdade), mas quer mostrar que sabe tudo, podendo assim, nos mecanismos que tecem a arena política e ditam a sobrevivência dos protagonistas, sacudir qualquer responsabilidade pessoal, atirando-a, de forma dispersa para não ter uma reação de grupo, contra atores hierarquicamente secundários (mas vitais) com pouca capacidade e tempo de reação.

E pronto, num mero exercício comparativista, Tiago Brandão Rodrigues é mais um pequeno deus quezilento e autocrático de que um Édipo, ainda que de aldeia. Sacríficou, sem pudor, a Diretora por uma ineficiência que é sobretudo da sua responsabilidade. É que, caramba, ele é Ministro da Educação há mais de uma legislatura e nada fez para resolver o problema, estrutural, da falta de professores. Esta inação, aliás, vai agravar muito a presente situação (radicalizar o “[des]encaixe de mão e luva”): prevêem-se, sem a ajuda de bolas de cristal, que o número de professores a reformar-se continue a superar o de novos candidatos. E este dado é conhecido, sem recurso a oráculos, há muito, o senhor Ministro conhece-o há muito, e nada fez (seria um Édipo que sabia ter morto o pai e ficasse caladinho). Veremos como os deuses superiores da República Portuguesa (votantes) reagem, é que o senhor Ministro precisa de uma hemorragia narcísica (aproximando-se aqui de Édipo).

"Ansiei por" de Thomas Gorpas

Thomas Gorpas (Missolonghi, 1935-Athenas, 2003)

Tradução de Tatiana Faia com Yiorgos Evgenios Douliakas

 

Ansiei por

Ansiei por robalo cozido com batatas assadas e molho de ovo e limão
que deixa um cheiro doce e ressuscita.
Ansiei pela procissão da Sexta-Feira Santa na minha cidade.
Ansiei por carne assada no forno com massa.
Ansiei por leite fermentado.
Ansiei pelo ravani da minha mãe.
Ansiei por um cigarro do maço do meu pai.
Ansiei discutir Nietzsche e Dostoievsky com
Yiorgos Kotsiras e Yiorgos Fagópoulos.
Ansiei por deixar que a chuva me apanhe enquanto desço a rua
a fumar à chuva.
Ansiei pelos meus primeiros amigos de Missolonghi.
Ansiei pelos meus primeiros amigos de Atenas. 

Ansiei pelas raparigas ansiei pelas avós que se sentam nos degraus e
em bancos na rua em frente de casa verões inesquecíveis enquanto cai
o sol enquanto cai a tarde fantasias e fábulas junto com
desejos secretos e duras realidades.
Todas as coisas estão separadas e juntas o branco e o negro esquecidos e
Inesquecíveis coisas amadas e desprezadas.
E a poesia não fala de acabar. O céu na terra ou a terra
no céu dá no mesmo.
Cheiros do corpo cheiros da sala de aula cheiros do campo
cheiros do café e da taberna da sala
do quarto.
Vem cá Golfo no curral a mãe do Kitsos sentada o Yiannos
e a Pagona canções francesas da rádio Luxemburgo e
da rádio Montecarlo Zorro Dan Fowler e a revista Hele-
nopoulos de Nikos Tsekouras.
Tento atravessar um túnel e sair para a luz ou tento da
escuridão dos nossos dias entrar num túnel
inundado de luz?

E amor.

 4.3.1998 

Νοστάλγησα

 

Νοστάλγησα λαβράκι βραστό με πατατούλες αυγολέμονο
να μοσχοβολάει και ν
᾿ ανασταίνει.
Νοστάλγησα Επιτάφιο στην πόλη μου.
Νοστάλγησα γκιουβέτσι στο φούρνο.
Νοστάλγησα ξινόγαλο.
Νοστάλγησα ρεβανή της μάνας μου.
Νοστάλγησα τσιγάρο από το πακέτο του πατέρα μου.
Νοστάλγησα συζήτηση για το Νίτσε και τον Ντοστογιέφσκι με
τον Γιώργο Κοτσίρα και τον Γιώργο Φαγκόπουλο.
Νοστάλγησα να με πιάσει η βροχή στο δρόμο να περπατάω μες
στη βροχή καπνίζοντας.
Νοστάλγησα τους πρώτους φίλους μου στο Μεσολόγγι.
Νοστάλγησα τους πρώτους φίλους μου στην Αθήνα.
 

Νοστάλγησα κορίτσια νοστάλησα γριές να κάθονται στα σκαλιά και
σε σκαμνιά έξω από το σπίτι καλοκαίρια αλησμόνητα ενώ πέφτει ο
ήλιος ενώ πέφτει το βράδυ φαντασίες και παραμύθια ενωμένα με
κρυφές λαχτάρες και σκληρές πραγματικότητες.
Όλα είναι χώρια και μαζί λοιπόν άσπρα και μαύρα ξεχασμένα και
αξέχαστα αγαπημένα και περιφρονημένα.
Καί η ποίηση δεν λέει να τελειώσει. Ο ουρανός στη γη η γη στον
ουρανό το ίδιο κάνει.
Μυρουδιές του σώματος μυρουδιές της τάξης μυρουδιές της εξοχής
μυρουδιές του καφενείου και της ταβέρνας του θαλάμου και της
κρεβατοκάμαρας.
Έβγα Γκόλφω στο μαντρί Τού Κίτσου η μάνα κάθονταν ο Γιάννος
κ
᾿ η Παγώνα γαλλικά τραγούδια από το Ράδιο Λουξεμβούργο και
το Ράδιο Μόντε Κάρλο Ζορρό Νταν Φόουλερ και το περιοδικό Ελλη-
νόπουλο του Νίκου Τσεκούρα.
Προσπαθώ να διασχίσω μια σήραγγα και να βγω στο φως ή προ-
σπαθώ από το σκοτάδι των ημερών μας να μπω σε μια σήραγγα
γεμάτη φως; 

Καί αγάπη.