Agradecimento a Joseph Frank

há anos atrás
vi-me
numa situação
desesperada
segui
durante muito tempo
um caminho
que achava bom
o do aluno diligente
que faz os trabalhos de casa
e não falta
a muitas lições
e de repente
onde devia estar
o meu futuro
encontro
um poço negro
e o peso
de contas por pagar

os trabalhos
escasseavam
e acabavam sempre
no silêncio
depois de mais
uma entrevista humilhante

era verão
e eu sentia
que toda a minha vida
tinha sido
um enorme desperdício

fiz então
o que costumo fazer
quando me encontro neste estado
voltei-me para Dostoiesvski
tinha comprado recentemente
Dostoyevsky
A writer in his time
de Joseph Frank
e os meus dias caíram
numa rotina
de manhã
ia à praia
nadava
até deixar
de sentir o corpo
e de tarde lia
a biografia de Dostoievski
isto durou uma semana
no final da qual
eu recordara
(envergonho-me
por admitir agora
por escrito
que alguma vez
o tivesse esquecido)
que o valor de um ser humano
não é determinado
pela sua função
num determinado sistema
e que uma vida passada
a ler bons livros
é uma vida
bem vivida

era
um homem feliz
tanto quanto se pode ser
naquelas circunstâncias

ao ponto de procurar
o endereço
do Professor Frank
e de começar
a escrever uma nota de agradecimento
por aquele milagre
de mais de 900 páginas
ao mesmo tempo
iluminado
e escrito
com o arrebatamento
de um romance de Dostoievski

nunca terminei o e-mail
o Professor Frank
é um homem ocupado
quem sou eu
para tomar o seu tempo?

ano e meio depois
a minha vida
tinha dado uma volta
mudei-me para outro país
arranjei um emprego
que não era
demasiado desagradável
quando vi no New York Times
o orbitário de Joseph Frank
não sei muito sobre o homem
94 anos
espero que tenha tido
uma vida boa

gostava de lhe ter escrito então
mas quanto a isso
não há nada
que possa fazer agora
para além
deste poema

Vestido Vermelho 

 Nunca serás aquela loira de vestido vermelho a desaparecer na distância 

Como uma brisa fresca, apesar dos quase quarenta graus atenienses, 

Nunca terás todos os nomes possíveis, nem serás a manic pixie dream girl 

Que o tempo desfez, ama-se mais a ilusão que a verdade, 

Nunca te vi de vestido sem estares toda cinzenta, uns minutos e depois, 

Não tu,  um sol impossível nos metálicos invernos nórdicos, 

Nunca serás o que te sonhei, mas a culpa dos sonhos é de quem os sonha, 

Não de quem com um olhar, planta ilusões, que crescem em vazio, 

Maior ainda do que antes da semente, nunca serás aquela loira de vestido vermelho, 

Porque os filmes acabam sempre antes do roer das unhas se entranhar nos nervos, 

Antes do nome carregar toda a frustração e desprezo que os pós-créditos trazem, 

Se se esperar tempo suficiente, nunca serás aquela loira de vestido vermelho, 

Mesmo que tenhas sido aquela loira de vestido vermelho, mesmo que isto 

Quase seja um poema de amor, que nunca será, porque tudo uma vela curta, 

Numa noite de incêndio. 

 

Atenas 

 

09.07.2019 

 

The Torso - poema de Robert Duncan

THE TORSO

 

Most beautiful!      the red-flowering eucalyptus,

           The madrone, the yew

 

        Is he …

 

So thou wouldst smile, and take me in thine arms

The sight of London to my exiled eyes

Is a Elysium to a new-come soul

 

                         If he be truth

                         I Would dwell in the illusion of him

 

His hands unlocking from chambers of my male body

 

                 such an idea in man’s image

 

          rising tides that sweep me towards him

 

                         …homosexual?

 

                                    anda t the treasure of his mouth

 

                         pour forth my soul

 

                                     his soul              commingling

 

I thought a Being more than vast, His body leading

                  into Paradise,      his eyes

                                quickening a fire in me,         a trembling

 

               hieroglyph:          At the root of the neck

 

         the clavicle, for the neck is the stem of the great artery

             upward into his head that is beautiful

 

                                    At the rise of the pectoral muscles

 

the nipples, for the breasts are like sleeping fountains

       of feeling in man, waiting above the beat of his heart,

       shielding the rise and fall of his breath, to be

       awakend

 

                                    At the axis of his mid hriff

 

the navel, for in the pit of his stomach the chord from

     which first he was fed has its temple,

 

                                 At the root of the groin

 

the public hair, for the torso is the stem in which the man

      flowers forth and leads to the stamen of flesh in which

      his seed rises

 

a wave of need and desire over         taking me

 

                              cried out my name

 

              (This was long ago.      It was another life)

 

                                                and said,

                           What do you want of me?

 

 

I do not know, I said.        I have fallen in love.        He

        has brough me into heights and dephts my heart

                        would fear         without him.       His look

 

            pierces my side     .       fire eyes     .

   

          I have been waiting for you, he said:

                                        I know what you desire

 

                       you do not yet know        but through me     .

 

         And I am with you everywhere.         In your falling

 

         I have fallen from a high place.            I have raised myself

  

                          from darkness in your           rising

 

                                                     wherever you are

 

                my hand in your hand         seeking        the locks, the keys

 

I am there.            Gathering me, you gather

 

                    your Self.

 

       From my Other is not a woman but a man

 

      the King upon whose bosom let me lie.         

 

                                                                                                                          Poema de Robert Duncan        1968

Nota: “Torso”, pintura-colagem do poema de Robert Duncan - ”The Torso”, é um livro de artista. É dedicado ao poeta Ricardo Marques.

 

 

 

                                   

 

 

 

Breve ensaio sobre a chegada

1.

 A terra crestada está ali em frente
com as últimas ondas que rosnam
e insistem em seu imprevisível gesto.

Logo o porto se alarga
como goela de animal ferino

e essa pátria ainda sem palavras
abre suas fauces para nós
incrédulos

tomados pelo medo do rapto.

2.

Tanta vida gasta até essa linha
até essas pedras lisas:
Europa, vejo teu rosto limpo
e largo,
no meio da bonança
enquanto o animal ainda está adormecido

então torço com todas as forças:

oxalá a borrasca que sabemos
sempre próxima
a explosão da língua inimiga
não passe de uma ranhura
no assoalho, o estranho esgar
do vento no telhado.

3.

 Para essa terra de abandono
migramos,
carregando o que sobra
do despojo:

nosso rosto virado
rumo ao sol,
rebojo de poeira e vento
na seca

e uma flor, pelo menos,
pelo menos uma flor
aberta apesar da fome

- aquela, que nos sobrevive
e demora

4.

 Entre os trilhos para Ventimiglia
vejo um corredor de ruínas:

ferrugem, chicória e ervas daninhas
os prédios rachados
- áridos, quase cactos
pela maresia

nesse limbo entre duas terras
há uma calça estilhaçada
e um sapato solitário
deitado, como corpo violado

são as relíquias de outra guerra
onde a bomba é o carimbo
e o míssil é a fronteira imaginária

mais adiante
o tesouro saqueado:
a mala aberta
como boca desdentada

a pátria portátil jaz no trilho

logo o trem se moveu na estação,
a mala foi ficando pequena
e longínqua, debaixo do sol cortante

não foi possível ver
o que brilhava dentro dela
- um alfinete
talvez algum pente de nácar:

aquele brilho insólito
que enfrenta as dunas do deserto

- um profeta no meio da devastação.

"A Tempestade" de Georg Trakl

Georg-Trakl.jpg

Tradução: J. Carlos Teixeira

A Tempestade

Vós, selvagens montanhas, das águias
Sublime luto.
Nuvens douradas
Fumegam sobre desertos de pedra.
Paciente silêncio respiram os pinheiros,
Os cordeiros negros no abismo,
Onde subitamente o azul
Estranhamente silencia,
O doce zunir do abelhão.
Ó, verde flor -
Ó, silêncio. 

Oníricos agitam sombrios espíritos
Do ribeiro bravio o coração,
Escuridão
Que desaba dos desfiladeiros.
Vozes brancas,
Errantes pelos pátios lúgubres,
Terraços despedaçados,
A violenta ira dos pais, o lamento
Das mães,
Do menino, o dourado grito de guerra,
Dos não-nascidos,
O gemido de olhos cegos. 

Ó dor, tu, flamejante visão
Da grande alma!
Estremece no negro tumulto
Dos cavalos e vagões
Um raio rosa e horrendo
No abeto ressonante.
Frio magnético
Paira em volta desta altiva cabeça,
Brilhante melancolia
De um Deus enraivecido. 

Medo, ó venenosa serpente,
Negra, morre na pedra!
Lá, caem das lágrimas
Correntes bravias,
Tempestade-compaixão,
Ecos em trovões ameaçadores
Os cumes em neve rodeiam.
Fogo
Purifica noite destroçada. 

in Der Brenner, 1914


Das Gewitter

Ihr wilden Gebirge, der Adler
Erhabene Trauer.
Goldnes Gewölk
Raucht über steinerner Öde.
Geduldige Stille odmen die Föhren,
Die schwarzen Lämmer am Abgrund
Wo plötzlich die Bläue
Seltsam verstummt,
Das sanfte Summen der Hummeln.
O grüne Blume -
O Schweigen.

Traumhaft erschüttern des Wildbachs
Dunkle Geister das Herz,
Finsternis,
Die über die Schluchten hereinbricht!
Weiße Stimmen
Irrend durch schaurige Vorhöfe,
Zerrißne Terrassen,
Der Väter gewaltiger Groll, die Klage
Der Mütter,
Des Knaben goldener Kriegsschrei
Und Ungebornes
Seufzend aus blinden Augen.

O Schmerz, du flammendes Anschaun
Der großen Seele!
Schon zuckt im schwarzen Gewühl
Der Rosse und Wagen
Ein rosenschauriger Blitz
In die tönende Fichte.
Magnetische Kühle
Umschwebt dies stolze Haupt,
Glühende Schwermut
Eines zürnenden Gottes.

Angst, du giftige Schlange,
Schwarze, stirb im Gestein!
Da stürzen der Tränen
Wilde Ströme herab,
Sturm-Erbarmen,
Hallen in drohenden Donnern
Die schneeigen Gipfel rings.
Feuer
Läutert zerrissene Nacht.

in Der Brenner, 1914