"Crocodilo, Dundee" e "Itália, vulcão", de Gabriela Gomes

CROCODILO, DUNDEE

já estamos demasiado velhos para fazer os mochilões
e mesmo assim andamos como crocodilos pelos
mercados de marrakech
olhando roupas de odalisca
que é o que pensamos que se vende em marrakech
e também temperos coloridos e açafrão

também costumamos pensar que se formos à índia agora
já disfarçados de outro animal
podemos ser como uma cobra ou como a vaquinha maribela
se fôssemos agora à índia
nos desapontaríamos ao perceber que o curry não existe

às vezes sonho que uso os quatro membros
como o meu meio de transporte
na maioria das vezes corro como uma chita
na savana da namíbia
mas hoje sonhei que me rastejava pelo mercado de fez
como um crocodilo gordo e pesado
procurando pedras preciosas

estamos demasiado velhos para fazer os mochilões
mas mesmo assim conseguimos matar as pessoas
com os pesos de nossos corpos


ITÁLIA, VULCÃO

andávamos por ruas tortas e parávamos sempre no mesmo lugar

a itália presente aqui
presente aí
enquanto eu
andava pela via dei poeti por entre as paredes
todas elas amarelas todas elas laranjas todas elas cor de tijolo tijolo
todos eles um pedaço de telha que é um pedaço de casa e você
alla nostra casa
chegando na sua própria cidade invisível,

você

você que precisa visitar, construir telha a telha a sua cidade
invisível e torná-la visível a itália na língua na cor da telha a itália
na língua na massa enrolada na ponta do garfo do molho no pão
(do pão no molho)
a itália
até

você

enquanto você chegava nessa itália
eu longe
caminhava nas mesmas ruas da itália entrava nas cantinas e ouvia
ciao bella arrivederci buongiorno e a língua que grita é a língua
me rasga e me rompe num início de primavera

é a língua que me queima e arde
e me faz

a língua

me faz querer servir bolonhesas dobrar tortellinis cortar na ponta
da faca com a mesma ponta do dedo cortar os pequenos pedaços
dobrar os ravioles miúdos ralar o queijo e unir no molho a
língua que fala e a língua que come a pequena cidade da pequena
(grande) nonna que fala alto que grita a língua que rasga em mim
e eu que chegava à casa da nonna e decidia como quem foge de
ti que é para cá que venho e que sem saber você por aí construía
com a mesma língua que enrola que rasga que grita a sua nova
cidade a cidade invisível mais vermelha que já vi
e talvez bolonha seja mesmo a cidade vermelha da história de
gerião e herácles
e talvez seja mesmo a cidade invisível mais vermelha que já vi

todas nós chegaremos em algum momento na itália
nem que seja pelo vulcão

3 Poemas de _pescoço x sobreviventes de Carla Diacov, Garupa Edições, 2021

Whatever it is, the way you tell your story online can make all the difference.

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x

sobreviventes deitados trocam
figurinhas repetidas
experiências amorosas repetidas
de bruços trocam
feito meninos que tocam trocar
sorrisos enigmáticos repetidos
trocam até cascalhos repetidos
balançam os calcanhares no ar repetido e trocam
viram as barriguinhas para o céu 
trocam o curso das nuvens repetidas
trocam andorinhas repetidas
repetem TROCO NÃO TROCO TROCO
trocam as pernas de lugar
trocam o lugar de estado
os joelhos com os joelhos dos joelhos mais jovens
o de joelhos tortos repetidos
trocam hálitos repetidos
trocam ar
sobreviventes trocam tudo
apontam calor nós nos cabelos
trocam fluidos inevitáveis repetidos
furos de guerras ecoadas
trocam repetida a terra de lugar
dormem com raízes parecidas a joelhos
sobreviventes dormem repetidos
de repetidas mãos dadas a sonhar
incertas repetições mais 
exatos epílogos mais 



:

não me sinto tão 
bem nunca me senti tão capada
não tenho a memória de estar
vibrante "As they say on my own Cape Cod"
sinto que deveria ter me dedicado ao
arco e flecha como dediquei o pescoço
à leitura de teorias UFO
acordo com essa pança cheia de melancolia
olho minha mãe me olhando 
minha cachorrinha me olha olhando minha mãe triste
já fui pega olhando uma lata
de molho de tomates no lugar errado
o rapaz me pegou pela mão perguntou meu nome
perdida mora por perto está sozinha
entre ervilhas eu disse
o molho entre ervilhas
comprei caqui mole e bistecas de porco
comprei a serralheria dos ouvidos açougueiros
nunca me senti tão amputada
o caminho me levou até minha mãe
minha cachorrinha olhando minha mãe triste me olhando morta
acho que seu pai tinha isso que você tem
e isso veio da conversa com a psiquiatra
isso não tinha CID e eu tenho pensamentos mágicos
trocamos a cidade a psiquiatra
me sinto bem pior
agora que sei ser vibrante com a não compreensão
do tigre CONVIVER
sei e posso e alcanço falar sobre minhas deficiências
sobre meus distúrbios
e isso assusta muito quem não me vê babando
errando as pernas letras assusta não conhecer
devo ser mesmo esse caqui mole olhando
a lata errada nos mercados
carla
ninguém fala moléstia no poema
carla é só uma lata fora do lugar
carla
"As they say on my own Cape Cod"
a vida é bonita e cheia de coelhos com trevos entre os dentes
o rapaz mais famoso da minha estante
me puxa pelos cabelos
perdida mora por perto está sozinha
uma lata errada
"a loucura é portátil"


é claro que a lata não é errada
carla e a lata
"As they say on my own Cape Cod…
partners in prosperity."



:

tenho uma memória inquieta
tenho um pescoço de criança
conforto em lã com cheiro de avô
lavanda
canela com leite morno
nada mau
diriam 
para uma casa abandonada
nada mau
dizem 
nada nada mau
comenta quem acabará por morder meu pescocinho mofo

Pais e filhos

Ontem meu filho fez três anos;
e minha filha de cinco é a flor do meu quintal. 

A impossível maçã dos rostos
os olhinhos de cão, de quem olha e crê,
o mundo táctil mobilíssimo tão dado ao artesanato: 

“Um urubu, papai”
É, um urubu, pois é
“O seu avô, papai”
É, o meu avô, pois é
– e a coisa rígida
tão pouco dada
que quebra o dente e me resfria a tripa. 

Tu sabes bem o que é, Senhor, – perfeitamente bem:
teu filho lá
quarenta chibatadas
teu filho aí
“É Barrabás, cacete!”
– e a história toda, a intolerável história
de um cabrito sem pai. 

Só a sombra interessa, jumentinhos, só.
Que ao desenhinho mais asnal
mais jumentício
que se possa conceber
dá um contorno inteligente
e dimensões e estofo insólitos,
e algum contraste – denso, escuro – à brancura cerebral. 

As matemáticas, canções, a analgesia – sombra;
sombra a ternura indestrutível nas carinhas de cachorro
e todo o resto – o câmbio, o chipe, o deeneá
e o meu avô. 

“Que é que cê tem, papai”
O que tenho eu, pois é
“Anoiteceu, papai”
Anoiteceu, pois é
– é o artesanato, eu acho,
mobilíssimo
e a sombra asnal que me deixa inteligente. 

Três aninhos.
Minha flor.

Finados

Não me lembro mais dos teus olhos.

Isto é – me lembro sim, mas não daqueles
em que suponho (não me lembro) eu me queimava
quando a gente tomava chá:
mas só dos outros.

Um, dois milímetros de fresta (eu lembro bem)
donde saía uma luz fosca
que não chegava a iluminar a cara, isso não, imagina
mas que dava ao corpo todo
(ao corpo e às mãos, sim, sobretudo às mãos)
um halo mais solene
uma materialidade imaterial.

Das mãos me lembro bem, das últimas e das penúltimas,
pois quando entrava no teu quarto
ali pelas catorze
eram elas que me estendias, “Filho, és tu?”, ainda sonolento
na menção de me abraçar.

Sempre acordaste tarde, sempre foste um escândalo.
Hoje eu aqui leio o teu nome sobre o mármor
e é vento num cipreste
e um cão mija no além
mas dos teus olhos (não das mãos, das mãos absolutamente)
eu não me lembro nem a pau;
eu não me escandalizo.

(Quando ventava no cipreste
e um cão mijando não morreu
notei que algo se revelava
e estava a ponto de entregar-se
mas teus olhos se interpuseram.)

É tarde.

“Moço, moço!”

Acho que vão fechar o estabelecimento.

“Moço, ei!”

E um sino deu as vésperas e o sol sumiu e eu obstinadamente não me lembrei
[dos teus olhos.


Dois poemas de Dirceu Villa

sr. barbáro

um poema fere o sr. barbáro na primavera,
no inverno, em qualquer estação; debaixo do
braço, na virilha, na garganta, todos fatais ao
mais rude bufão; que sabe ler, e não sabe ler.

o sr. barbáro pede ajuda de deus quando quer
matar, quando põe pedras na boca para falar,
quando cospe atacando cores e abre um ânus
dentro do crânio; o sr. barbáro caga na bolsa.

soldado, sonha-se o sr. barbáro, e bate muita
continência [o incontinente]; o sr. barbáro é são,
mas é demente. o sr. barbáro tem um esgoto sob
a língua, olhos de estuprador e impotente. não

separa ódio de comoção, ou virtude de covardia:
o sr. barbáro gritava à tv numa poltrona até o dia
em que lhe deram poder. o sr. barbáro parece ter
ratos no rosto. haver vida o fere, é um desgosto.

gentileschi

schloss weißenstein, suzana tem nojo e dor nos olhos, sua
nudez sentada se contorce diante de dois velhos cobiçosos
a despeito do nojo e da dor [ou por causa do nojo e da dor].
artemisia amarrota-lhe os olhos diante do esgar rosnado de

quem segreda o assalto de seu sexo; em quatro anos, suzana
se torna judite, ganha a ajuda de uma amiga, e os dois velhos
se fundem no grande holofernes: as mãos das mulheres forçam
o corpo contorcido do general, a espada trincha pele, músculos

nervos, ossos. a determinação nos olhos de judite e de sua ajuda
só se equipara ao desespero nos olhos da cabeça quase solta
do corpo que fora dois e jaz agora um: as mulheres se afastam
do combate [técnicas da vingança exata] no museo nazionale. 

Susana e os anciãos, Artemisia Gentileschi (detalhe)

Susana e os anciãos, Artemisia Gentileschi (detalhe)