A partida das formigas-de-asa — Haikus Bálticos

Kristinestad, Julho 2024

Zumbe uma mosca

o meu sangue em ti

a serenidade da água.

 

Algo mergulha

não tem medo

das cianobactérias.

 

Nas pedras rojas

a água desaparece —

a bétula crepita.

 

No cais de madeira

formigas-de-asa —

emigrantes no fim de Agosto.

 

Sobre o verde ondulante

dorme a bebé —

leve brisa de Julho.

 

À beira Báltico

o silêncio de antigos aromas

— velho fumeiro de peixe.

 

No sono da bebé

tento encontrar

o meu silêncio.

 

Mais uma fotografia

um registo

para o esquecimento.

 

Enganar o tempo

com palavras —

nem as pedras conseguem.

 

O Sol o mar

um pedaço de papel

um momento todo meu.

 

À beira do mar

respira-se mais fundo

com uma caneta na mão.

 

Sobre a pedra

no meio da relva

caganita de coelho.

 

Chuva no telhado

a luta

das formigas-de-asa.

 

Nas folhas da bétula

seus olhos encontram

uma canção de embalar.

 

Inúmeras formigas-aladas

frenesim no telhado —

agora silêncio e vazio.

 

Flutuando na água da chuva

só o vento move agora

as formigas-de-asa.

 

No bruxuleante lusco-fusco

da sauna de madeira

lavo-me com água da chuva.

 

Escovando o cabelo

deixando de ser

a cada passagem.

 

Ouvindo shakuhachi

na sauna lavo-me

com a pressa de um negrilho.

 

Como uma bandeira

das minhas derrotas

cabelo ao vento.

 

Com esta lenha e esta água

absolvo também

os meus pecados.

 

Sobre esta rocha

repetindo-me

célula a célula.

 

Porque ver só formigas

quando por todo lado

flores.

 

A quem minto

quando me deixo abocanhar

por tanta vontade.

 

Sobre uma fraga longínqua

passa por mim

o mesmo vento.

 

Na sombra

não forces

o poema.

 

Último dia na cabana

rego os trevos

com a glória-da-manhã.

 

Eskilsö-Kaskinen, Julho 2024

Céleste Albaret faz a lida do palácio

Na ombreira do verso
há uma voz que ainda
consente em ser útil

e permite que eu a veja
e repita, sílaba por sílaba.
A mesa de mogno da sala

está pronta para receber
o papel branco-amanhecido:
Celeste está cansada,

de cotovelos obstinados,
cheia de conversas de salão.
Contrafeita, prefere o tom centrípeto

da mulher a dias que ocupa
o tampo e o tempo da mesa
com lágrimas de cansaço
entre cálices de vinho.

E ela então agiganta-se
e escreve
os recados a Deus,
o quotidiano macabro

do mezanino que a envolve.
Vigio-a nessa atmosfera insidiosa,
vejo-a lenta como algodão
de dia, sei que ela canta
crepitante nas piores horas

do pensamento.
Esta figura não tem
a brancura de Euricleia.
As suas pobres moedas

rodeiam
a lista negra dos dias,
os recados queimados, todos
com a minha mortal assinatura
– Erich Auerbach –

Ela tem o sonho cravado
nuns olhos roxos, distantes.
Os dedos desta mulher
parecem ter
vida própria,

assalariada, difusa.
(Onde andaste
para trazeres os dedos
assim?)
Mas a mulher
a dias apenas espreita

da janela oval
o Mar de Mármara,
trabalha em meu lugar
à mesa de mogno,
escrevendo recados a um
adeus adiado.

Ela espreita sempre
à janela do palácio,
completa a ruína
do que nos rodeia,

eu abro o vinho
às escuras
numa sala pétrea
do pensamento
e saio de rompante

quando sei que é
tempo de partir –
seguro no meu passo,
ouço-a ainda tossir.

O seu manto de presságios
é uma coisa prática.

De coração perdido, apostados os dois
Em esconjurar mapas e bibliotecas,
todo um cristalino colar de mitos.

Limpos e obscenos em claro convívio:
este é só mais um fim
De um inumerável princípio.

Olimpíadas

Hoje acordei com o cheiro
da morte como uma nódoa
na omoplata ou seria uma planta
de floração tardia?
Um nevoeiro espesso cobre
a cidade escondendo-os
sentados em escritórios ou à borda
da cama eles e eu indignados
Ninguém diria que hoje
é o dia da grande festa
Pelo Sena em desfile
vão passar de todo
o mundo os corpos
dos atletas

O outro que era eu

Fechado no bafiento gabinete londrino
à procura de Ruben A., por equívoco
falando com uma tal Laura enquanto lia
no gesso dos seus ombros uma Beatrice
de Dante tornada doutora em filosofia,
vi em mim um sentimento de pertença
posto do avesso. Receoso de rasgar
o vulcão de porcelana à minha volta,
do óbito do serviço de chá e sortido
de livros à brutalidade sedosa da saia
travada, ocorreu-me uma portuguesa
história de desenganos que célebre
atravessou os séculos e foi despejar
as culpas da minha inépcia na vala
da deserção intelectual, cavada
após um salto mortal do cinismo.

Foi um dia em que acordara aquém
do dinamitado espírito britânico,
embora além do seu vorticismo,
não me interessando já a vigilância
dos ataques aéreos no topo da Faber
& Faber
, cansado dos poetas titãs
combatendo na torre do capitão:
pus em marcha na imaginação
a figura de um oleiro de Alcobaça
e um bom açoriano chamado Mateus
Álvares, a par de um doce pasteleiro
do Madrigal, sem esquecer Marco Túlio,
o aventureiro italiano: todos condenados
à forca por se fazerem passar pelo outro,
todos querendo apenas ser Outro,

não o salvador ou messias judaico,
apenas alguém que não fosse oleiro
em Alcobaça, açoriano nos Açores,
aventureiro e logo italiano, só pessoa
que a outra fama colasse o nome inteiro.
Sonhando em prol do ocioso campesinato,
em defesa do alegre Chesterton, armado
em anarca detectivesco, abandonei
o gélido gabinete de Laura, notando
nos seus ombros o gesso da Beatrice
de Dante, na filosofia da sua mente
como na minha, uma alcova dissonante. 

(inédito)

Do paraíso ao inferno

Hieronymus Bosch, Jardim das Delícias, 1504

O Paraíso, que parecia ser só um e nos deu a altura devida (plena felicidade) para que a queda fosse exemplar (descobrimos os valores, as palavras e a dor), tornou-se, substantivado ou adjetivado, um mot-valise. Está, como não podia deixar de ser, em toda a economia industrial do turismo, mas igualmente noutras áreas da civilização do consumo (produção, consumo e lixo, na verdade).

Sabemos que vivemos numa retórica do hiperbólico, ampliamos, engrandecemos o mais que podemos tudo o que tiver a mínima condição para se destacar, sobressair ligeiramente num certo contexto. Estamos, pois, longe da paciência e da contenção avaliativa. Não que eu defenda, em modo inactual, uma hermenêutica judiciosa por sovinice, mas porque ninguém sai a ganhar com a banalização do grandioso (partamos do princípio que é possível defini-lo sem cair na arbitrariedade).

Nietzsche viu bem esta decadência no início do era dos todos os perigos (segunda metade do século xix). A ressaca do culto do génio romântico, que queria democratizar capacidades e competências, deixou emergir um spleen bafiento que ressuscitou, com demasiada facilidade, hierarquizações grotescas. Contra isto, escrevia aquele pensador: «E um povo — como um homem, aliás, — só vale pela marca da eternidade que for capaz de imprimir nas suas experiências.» (O Nascimento da Tragédia, § 23)

Dar-se-á agora também o caso de que de tanto paraíso, tanto paradisíaco resulte um cansaço que nos leve a abrir as portas do inferno (que, como sabemos depois de Sartre, são sempre os outros). E talvez este inferno, partindo de uma visão catastrofílica, seja somente a descoberta de que a civilização atingiu o colapso sistémico, não cultural ou psicologicamente (leia-se o Mal-Estar na Civilização de Freud), mas ambientalmente. A descoberta, de polichinelo, de que a Terra já não nos suporta (na dupla acessão: material e afetiva).

Se nos desalienarmos da retórica consumista (que colonizou todos os atos de fala, por mais anódinos que sejam), nem sequer sentiremos uma inquietante estranheza (das Unheimliche), mas, na melhor das hipóteses, resignaremos poeticamente e viajaremos sem agitação através do inferno à espera de sermos submersos pelos detritos: plásticos, linguísticos e imagéticos.