Luís Amorim de Sousa, O Cabo dos Trabalhos

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Luís Amorim de Sousa

O Cabo dos Trabalhos

memórias, autobiografia

Enfermaria 6, Lisboa
Março de 2020, 148 pp

Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha

12€


 

Estava eu a concluir o meu sétimo ano dos liceus quando uma crise familiar me levou a decidir ir à procura de emprego. 

– Vou trabalhar! – anunciei à família, no tom de quem declara: “vou para a guerra!” 

– Trabalhar? E os exames? – perguntaram os meus pais. 

– Faço-os por mim. – respondi. 

– Mas podes? 

– Posso. 

– Podes mesmo? De certeza? 

– Absoluta! 

– Então, sendo assim, está bem. 

Como isto se passava na Lourenço Marques dos anos cinquenta, procurar emprego resumiu-se a um telefonema. Um primo da minha mãe, Carlos Morais de Azevedo, parente próximo e razoavelmente lá de casa, detinha um cargo importante na Fazenda e prontificou-se logo a dar um jeito. De uma semana para a outra estava o assunto tratado: aspirante a oficial no quadro interino do Almoxarifado de Fazenda, com o ordenado mensal de três mil escudos. Era pegar ou largar. Peguei com gula. Três contos era dinheiro. E poucos dias depois, com as papeladas em ordem, lá fui eu de risca ao lado, apresentar-me ao serviço. 

 

Luís Amorim de Sousa

Luís Amorim de Sousa nasceu em Angola em 1937. Passou a infância em Lisboa e adolescência na capital colonial de Moçambique, que trocou pela vida em liberdade e as ofertas culturais de Londres no despertar da década de 60. Ingressou na BBC e desde então, e até atingir a idade da reforma viveu sempre no estrangeiro com uma longa permanência em Washington DC, onde exerceu o cargo de Conselheiro de Imprensa junto da Embaixada de Portugal. No mesmo cargo, foi colocado em Brasília e, a seu pedido, transferido para Londres onde atingiu a reforma. Regressou a Portugal e vive actualmente em Oxford. O Cabo dos Trabalhos é um aceno a Moçambique e assinala o começo de uma vida marcada por presenças e distância.

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Livros de 2019 (parte 1)

Ler furiosamente ou lentamente, mas ler. Ler por deleite ou para chupar informação, mas ler. Ler no quarto ou no comboio, mas ler. Ler com prazer ou com fastio, mas ler. Ler poesia ou prosa, mas ler. Ler todas as palavras ou ler na diagonal, mas ler. Ler contra ou a favor, mas ler.

É assim para os editores da enfermaria, um compromisso vital, quase biológico, com a leitura, porque sem ela a vida seria uma erro.

Numa subjectividade que não negamos ou ocultamos, cada um de nós faz a lista das melhores leituras de 2019.

Victor Gonçalves


La Faiblesse du Vrai (Seuil, 2018): um livro dentro do espírito do tempo que nos ajuda a pensar as implicações da pós-verdade. Myriam Revault d’Allonnes questiona as relações conflituosas entre a política e a verdade, monstrando que o problema principal da política não é o da sua conformidade à verdade, mas a forma como se constitui a opinião pública e se constroem os juízos de valor.

Uma Aproximação à Estranheza (INCM, 2017): Frederico Pereira acompanha o rasto e as marcas da estranheza, o seu processo de constituição em modo negativo e os traumas, pequenos e grandes, que se inscrevem em quem a sente. Como diz: “O uso da linguagem envolve o que Wittgenstein designa como a vivência do significado das palavras. Assim, percebemos que a sensação de estranheza decorre de uma interrupção ou quebra nessa vivência e não de algo intrinsecamente estranho na linguagem.”

O Pregado (1977/2011): Günter Grass é quase sempre magistral, apanha com uma facilidade divina qualquer lado do humano. Depois, imaginando e compondo novos mundos (poderosa escrita ficcional), sopra com vida mirabolante as personagens que coloca nos seus escritos. E isto também lhe permite trabalhar a língua em todo o seu esplendor. em O Pregado, como se diz na contra-capa, “Grass tece um interessante [eu usaria um adjectivo mais intenso] e hilariante estudo antropológico da cultura germânica desde o período neolítico até à década de 70”.

Tens de Mudar de Vida (2009/2018): Peter Sloterdijk é o melhor pensador da actualidade (digo-o sem forçar nada). Se quisermos saber o que se passa com o homem, sozinho ou acompanhado, sonhador ou trabalhador, consumidor ou ascético, vivo ou morto, temos de passar por ele. Este livro é sobre antropologia filosófica (daí a importância de se ter algumas bases filosóficas para o compreender bem), nomeadamente as antropotécnicas, isto é, “os procedimentos de exercitação mentais e psíquicos com que os homens das mais diversas culturas tentaram otimizar o seu estatuo imunitário cósmico e social face aos vagos riscos da vida e às agudas certezas da morte.” (Sloterdijk).

Sobre o Poder (2005/2017): Byung-Chul Han compete com Peter Sloterdijk para o lugar de pensador mais influente desta década. Mais sóbrio (no estilo e no manejo dos conceitos), desenvolve uma filosofia da frugalidade, anti-consumista e anti-capitalista, sem que seja, contudo, neo-marxista. É assim que a sua noção de poder, construída a partir dos pós-estruturalistas franceses, nomeadamente de Michel Foucault, deve centrar-se no que pode fazer para tornar os indivíduos mais livres e plenos e não nas técnicas, criticadas ou aceites, de domínio sobre o outro. Por isso diz: “É uma crença errónea supor que o poder opera unicamente inibindo ou destruindo. […] Um poder superior é um poder que configura o futuro do outro e não um poder que o bloqueia.”


Tatiana Faia

Patrizia Cavalli – My Poems Won’t Change the World (Gini Alhadeff, ed.), Penguin Books, 2018
Uma anedota famosa sobre Patrizia Cavalli, umas das mais importantes poetas italianas da actualidade, reza que durante algum tempo ela ganhou a vida como pintora e jogadora de póquer, e não necessariamente por esta ordem. Uma ironia mordaz e um sentido de humor tingido de uma ternura amarga lembram-nos que alguns poemas de repente nos podem tornar demasiado vivos à luz de algumas palavras, à força da representação de umas quantas situações. Há em Patrizia Cavalli a encenação de intimidades decadentes que brincam com as nossas fragilidades, com as nossas falhas morais e emocionais, e há qualquer outra coisa que é como uma inteligência cuidadosa que por gentileza se eleva acima disso e nos recorda que não somos tão óbvios como tudo isso. A poesia de Patrizia Cavalli é sobre a profundidade do humano.

Daisy Hay -Young Romantics: The Shelleys, Byron and Other Tangled Lives, Bloomsbury, 2011
Anna M. Klobucka – O Mundo Gay de António Botto, Assírio e Alvim, 2018
O livro de Daisy Hay tenta contrariar o mito dos poetas românticos como génios solitários, concentrando-se nos laços de amizade que uniram os jovens poetas românticos ingleses. O de Anna M. Klobucka revisita a vida e a obra de uma espécie de poeta tabu do primeiro modernismo português, António Botto, tentando reavaliar a sua relevância. De um modo ou outro, estes dois ensaios centrados sobre a figura de alguns poetas e sobre os laços que eles cultivaram tentam contribuir para que se escreva uma história mais exacta dos movimentos literários a que se referem. Pelo caminho, desarrumam o cânone, pelo menos um bocadinho, e isso não é pouco.

James Merrill – A different person, Knopf, 1993
Rico herdeiro de uma poderosa família milionária americana viaja até à Europa (pela maior parte mediterrânica) em busca dele próprio. Esta seria (e é de facto) a melhor descrição sensacionalista desta autobiografia de James Merrill, um dos maiores poetas norte-americanos do século XX. É difícil de explicar o quão impossível é de não se gostar deste livro. É sobre uma longa viagem conduzida às cegas, sem grandes planos ou objectivos além deste a que alude o título, de se tornar uma pessoa diferente, que termina talvez não com a descoberta mas com a aceitação de si próprio, com uma espécie de epifania sobre a alegria de estar vivo, que chega por prolongada exposição, em modo de tentativa, erro e ansiedade mais ou menos constantes, aos outros. 

Alberto de Lacerda – Labareda, Tinta da China, 2018
Alberto de Lacerda é um poeta que, como notava Pedro Mexia, não está particularmente identificado com nenhum cânone nacional. Nem especialmente identificado com a literatura de Portugal, nem com a de Moçambique, nem com a literatura de outros países onde viveu, a inglesa ou a norte-americana, talvez a pátria de Alberto de Lacerda sejam alguns outros poetas ao lado dos quais ele pertence. Poesia da paisagem e de quem nela vive, do encontro e do espanto, Labareda é uma antologia (relativamente) breve que colige alguns inéditos. Alberto de Lacerda escrevia poemas que são como artes de viver. E continua a ser um dos poetas mais raros do nosso cânone pessoal.

George Seferis – Six Night on the Acropolis, 2007
É o livro que estou a ler agora. Comecei a lê-lo em Julho, não longe da Acrópole, e perdi-o no caminho de volta a Inglaterra e tentei lê-lo numa biblioteca de línguas modernas, mas algures em Setembro o exemplar que lá estava desapareceu. Encomendei-o e levou seis semanas a chegar dos Estados Unidos, onde uma associação de gregos americanos, por qualquer questão de devoção que me ultrapassa, o mantinha em stock, e foi mesmo um dos poucos sítios em que consegui encontrar este romance do prémio Nobel grego à venda. Seferis é de longe mais conhecido como poeta, e tal como Kavafis, poeta de uma obra relativamente circunscrita. Num dos primeiros poemas que estão coligidos nos poemas completos, um homem pesa no colo o infindável peso de uma cabeça de mármore, a pesada herança de um país cujo presente não irá jamais traduzir as noções de glória que se atribuem ao passado. A vida de Seferis foi particularmente exemplar do nosso tempo. Refugiado da Ásia Menor, Seferis foi no seu próprio país, aquando da sua mudança para Atenas vindo de Esmirna, um estrangeiro. Este romance, Seis Noites na Acrópole, é sobre alguém jovem que, precariamente instalado em Atenas, se tenta encontrar a si próprio, entre um grupo de amigos literatos e diletantes, uma exploração do que poderá querer dizer isso, estar em casa ou estar em casa em qualquer parte do mundo. Um romance para hoje.


Vítor Teves

Diderot e a arte de pensar livremente (Círculo de Leitores, 2019) - Numa altura em que as figuras do século XVIII andam esquecidas (assim como muitos dos seus princípios), esta biografia ajuda a ressuscitá-las. Nela encontramos Diderot, um homem de pulso, a gerir toda uma enciclopédia e resistindo a todas as pressões do seu tempo. É um livro de leitura fácil, cheio de peripécias e humor, quer do tempo de Diderot, quer da sua vida pessoal. Interessante são as relações atribuladas com Jacques Rousseau, homem demasiado sensível, e com Catarina, a grande; assim, como o capítulo dedicado às suas mais importantes obras literárias: O sobrinho de Rameau e os diversos Salons. A ler.

Chalk – The art of erased Cy Twombly (Melville House Books, 2018) – Esquecendo polémicas à volta deste livro, esta pode ser a primeira e mais abrangente biografia até agora realizada sobre o artista norte americano Cy Twombly, falecido em 2011. Embora muito conhecido no meio artístico e literário, continua a ser um verdadeiro mistério. A biografia vem a esclarecer alguns pontos da vida obscura de Cy Twombly, com especial enfoque na sua vida amorosa, nomeadamente o seu relacionamento com Robert Rauschenberg e Nicola del Roscio. É uma boa entrada para quem quer conhecer um dos mais importantes pintores da segunda metade do século XX. .

Paradoxes de Robert Ryman (L’échoppe, 2018) – Este pequeno ensaio do crítico de arte francês Jean Fremón é um importante contributo ao estudo da obra de Robert Ryman, pintor falecido este ano. Fremón coloca Ryman na linha da iconoclastia – Plotino, Bizâncio, Malevitch – mas também em paralelo com a pintura norte americana dos anos 40/50 – Rothko e Newman (sobretudo). Interessante é encontrar um paralelo entre Beckett e Ryman, dois artistas que exploram o Paradoxo, um na escrita, o outro na pintura.  Numa época em que se fala de “pintura sem tinta”, Robert Ryman adquire uma importância extraordinária, como um dos seus principais precursores.

Hot, Cold, Heavy, Light – 100 Art Writings (Abrams Press, 2019) – O poeta e crítico de arte Peter Schjeldahl (1942 -) reuniu este ano, num único volume, os seus mais importantes textos críticos dos seus últimos 40 anos, exatamente 100 textos. Conhecido, sobretudo, pelos seus textos no The New Yorker, Schjeldahl reuniu textos publicados em diversas revistas, desde a Art Forum à Vogue. O livro está dividido em 4 capítulos, cada um correspondente aos binários Quente – Frio e Pesado - Leve. São textos de fácil compreensão, imaginativos e que prendem o leitor. É um excelente exemplo de boa crítica de arte, na linha dos poetas-críticos de arte Frank O’Hara e John Ahsbery.

Antologia dos Poemas (Relógio d’água, 2019) – Desde 2011 que não existia uma antologia de poesia de João Miguel Fernandes Jorge. Digo 2011 porque refiro-me à última Antologia realizada, a Antologia Açoriana. A deste ano tem a particularidade de trazer escolhas das últimas décadas, incluindo das obras híbridas (O próximo Outono e O Bosque). Preciosas são as notas e textos de Joaquim Manuel Magalhães, assim como alguns textos do próprio poeta. Esta pode bem ser a derradeira antologia e introdução à obra de João Miguel Fernandes Jorge, uma antologia que se destina, sobretudo, creio eu, a uma nova geração de leitores.

Anima Mea (Documenta, 2019) – A editora Documenta tem feito um trabalho extraordinário de divulgação dos artistas e pensadores portugueses. Neste ano de 2019 saíram inúmeros catálogos de enorme qualidade, alguns exemplos: o de António Bolota; o de João Jacinto; o de Manuel Rosa, o do Rui Sanches, etc. Entre todos os publicados escolho este de Alexandre Conefey, com textos de João Pinharanda e Maria Filomena Molder. Ambos os autores dispensam apresentações e a minha atenção recai sobre o texto de Filomena Molder, um texto pequenino, é certo, mas delicado. Depois de uma apresentação geral, Filomena passa para uma interpretação desenho a desenho; é aí que ficamos rendidos pela sua sensibilidade. Lido o texto, não conseguimos desprendermo-nos das suas imagens e palavras, este é o poder da boa crítica de arte.  





Terceira Margem

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Poesia de Portugal e do Brasil

Editado por
Francisca Camelo
Bruno M. Silva
J. Carlos Teixeira
Vítor Teves

Prefácio de Pedro Eiras

 Enfermaria 6, Lisboa, novembro de 2019, 174 pp.

Capa de Gustavo Domingues

14€

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Para revelar o sabor das coisas, para saber o que já se sabia, não há regras, há apenas escritas, procuras, experiências e encontros, a muitas vozes e a muitas mãos – por exemplo, vinte e duas mãos de poetas e poetisas, entre Portugal e o Brasil, vozes que descrevem, revelam, diagnosticam as avarias na máquina do mundo, vozes que se enervam, ironizam, por vezes escondem a dor numa fuga em frente, vozes ríspidas, oníricas, ternas e lentas e velozes ao mesmo tempo, vozes imprevisíveis, que coincidem num mesmo presente e o multiplicam por outros tantos tempos, vozes, idiomas.

Pedro Eiras, “Como se revela o sabor das coisas”