No Cemitério de Vila Formosa

No Cemitério de Vila Formosa a terra é cor de tijolo, os mosquitos são famintos

Mesmo com trinta graus e o Sol é húmido de inferno e cólera,

Demorei trinta anos a visitar-te e agora vejo este monte de terra quente,

Com um cata-vento vermelho e verde, que roda às vezes,

Mesmo sem vento e tu sorris de uma foto pequeníssima,

E comove-me a forma como a tia arranca uma erva daninha,

Com o mesmo cuidado de quem tira um cabelo solto da cara de alguém,

Rega as plantas porque não te pode dar um abraço,

A morte dói só aos vivos quando o amor permanece,

Apesar da humidade do ar, aquele calor é doloroso como metal,

A minha prima soluça, não consigo deixar de olhar para aquela terra estranha,

Onde passarás o resto dos dias que já não te restam,

Custa-me esta distância, o pouco que me ficou de ti, um gelado esmeralda,

Um carrinho de brincar, o sorriso que parecia dizer que tudo está bem,

Segurando uma g3 numa foto da tropa, um monte de terra vermelha,

Entre milhão e meio, no mato rodeado por uma floresta cinzenta,

Contudo, o Cemitério de Vila Formosa, não será a tua última morada,

Essa será naquele ente último a lembrar-te ou este poema.

Turku

20.03.2020

Tu; Feriado

Tradução: João Coles

TU

Quando a vida se enrodilha sobre si
e não encontra a cauda,
quando em volta te olhas e não há nada,
quando tens fome,
quando não sabes o que fazer,

és verdadeiramente tu.

Quando o passado
é uma paisagem fechada num quarto escuro,
um retrato mal feito,
quando a esperança se seca
como um velho tronco morto,

és verdadeiramente tu.

Quando te deténs para pensar, e pensar
é a última coisa que queres fazer,
quando não há lugar nem maneira,
quando não sabes porquê,
quando te tornas incómodo,

és verdadeiramente tu.

Quando todas as coisas são pilares de nada,
um peso cego sobre as costas,
quando a garganta engole a escuridão,
quando tudo está decidido,
e te custa a perpetrar,

és verdadeiramente tu.

Quando o espírito se preenche
de nuvens negras e dos olhos
te caem todas as chuvas,
quando um amigo parte,
e não sabes se queres permanecer deste lado,

és verdadeiramente tu.

Quando a derrota é o único espelho
das tuas tentativas,
quando sob o último golpe
estás em queda e não sabes explicar
porque é que para te ergueres te preparas,
sim,
és verdadeiramente tu.

FERIADO

Vemo-nos à hora em que
o dia se guarda no espírito
e vencido por uma ternura irresistível
se abandona à noite,
minutos que ardem
no topo da cidade,
e toda a luz da manhã
é vertida nos cálices.
Os corpos trampolins de pensamentos
altos e simples como rios,
virados para o mar atrás de cada olhar amigo.
A sede das bocas
não espera resposta,
é forte em abundância,
é uma flor vermelha plantada
no meio de música selvagem,
dá-se em risadas que esquecem
cada momento e cada sentido.
Só saltos e cores,
só acenos e sabores, inúteis e reais,
só o estrondo que fala em segredo.
Pode calhar,
entre pessoas e instantes,
pode calhar veres-me
enquanto desvio
o olhar em direcção a um vazio.
Mas nenhum dos meus pés
se dirige à solidão.
Se prestares atenção,
as escuridões e as angústias do andar de baixo,
que as vassouras batem nos tectos,
têm o mesmo ritmo desta festa,
do passo de dança
que nasceu de uma qualquer queda.
Pois então não te preocupes,
voltei no ar denso de notas e de risos,
na terra que nos assemelha
são vocês os meus navios
nesta viagem sem partida.
De novo o copo vazio,
outro jogo que o mundo entorna,
e, levemente,
à volta das estrelas dos nossos olhos
a escuridão que confunde
as palavras da noite.


TU

Quando la vita si è attorcigliata su sé
e non trova la coda,
quando intorno ti guardi e non c’è nulla,
quando hai fame,
quando non sai cosa fare,

sei veramente tu.

Quando il passato
è un paesaggio chiuso in una stanza buia,
un ritratto fatto male,
quando la speranza è secca
come un vecchio tronco morto,

sei veramente tu.

Quando ti fermi a pensare, e pensare
è l’ultima cosa che vuoi,
quando non c’è posto e non c’è modo,
quando non sai perché,
quando ti sei scomodo,

sei veramente tu.

Quando ogni cosa è un pilastro per nulla,
sulle spalle un peso cieco,
quando la gola inghiotte il buio,
quando è deciso tutto quanto,
e fai fatica a perpetrare,

sei veramente tu.

Quando si riempie di nuvole nere
lo spirito e dagli occhi
tutte le piogge ti cadono,
quando un amico se ne va,
e non sai se vuoi restare di qua,

sei veramente tu.

Quando la sconfitta è l’unico specchio
dei tuoi tentativi,
quando sotto l’ultimo colpo
stai cadendo, e non sai spiegarlo
ma a rialzarti ti stai preparando,
sì,
sei veramente tu.

FESTIVO

Ci vediamo all’ora in cui
il giorno si guarda nell’animo
e da una tenerezza irresistibile vinto
si abbandona alla sera,
minuti che ardono
sulla parte alta della città,
e tutta la luce del mattino
nei calici è versata.
I corpi trampolini a pensieri
alti e semplici come fiumi,
tesi al mare dietro ogni occhio amico.
La sete delle bocche
non attende risposte,
è forte di abbondanza,
è un fiore rosso piantato
in mezzo a musica selvatica,
si dà in risate che dimenticano
ogni tempo e ogni senso.
Solo salti e colori,
solo cenni e sapori, inutili e veri,
solo il frastuono che parla in segreto.
Potrà capitarti,
tra le persone e tra gli istanti,
potrà capitarti di vedermi
mentre mi lascio scappare
lo sguardo verso un vuoto.
Ma nessuno dei miei piedi
alla solitudine è rivolto.
Se presti attenzione
i bui e le angosce dal piano di sotto,
che le scope sui soffitti battono ,
fanno il ritmo alla festa di qua,
al passo di danza
che da qualche caduta nacque.
E allora non preoccuparti,
rieccomi nell’aria densa di note e di risa,
nel paese che ci rassomiglia,
siete voi le mie navi
per questo viaggio senza partenza.
Un'altra volta il bicchiere vuoto,
un altro gioco che il mondo rovescia,
e, lievemente,
intorno alle stelle dei nostri occhi
il buio che confonde
le parole della sera.

O DERRADEIRO POEMA SOBRE O VÍRUS (...)

O DERRADEIRO POEMA SOBRE O VÍRUS

                COM O SUBTÍTULO

            ABRIL EM CHERNOBLY

  Ou será Chernobly em Abril? Não sei,

não sei, não interessa! Este é o derradeiro

poema (quero dizer, Soneto) à vinda

do Birus, do Vírus, do Tirus. Tirus? Sim

vinte tiros (com sotaque do norte) no pé.

Mas pior é ver a Genética com a Estética

(mais alguma palavra que acabe em -ética?)

Bom, eu até procurava no dicionário mais

alguma bonita palavra, mas, confesso, não

me apetece nada ir receber o Camões.

E, sim, este poema, este soneto de cama,

é mau. É, claro, que é mau. Tinha de ser

mau para servir de lupa amplificadora

do vírus que anda por aí em jornais de

duas siglas. Mau até dar com um pau.

                          (até rima, já viram?)

Recapitulemos: este poema, sim, é o

derradeiro poema sobre o vírus. Mas

qual vírus? O da linguagem (Langua

ge is a virus) ou do contente nome?



big-science_04.jpg

Laurie Anderson - O superman, 1982.

 

Pier Paolo Pasolini, “Trabalho o dia inteiro como um monge”

Tradução: João Coles

Trabalho o dia inteiro como um monge
e à noite passeio como um gato vadio
à procura de amor... Proporei
à Cúria de ser declarado santo.
Respondo à mistificação
com a brandura. Observo com o olho
de uma imagem os afectos à linchagem.
Olho para mim mesmo massacrado com a serena
coragem de um cientista. Pareço
sentir ódio, e porém escrevo
versos plenos de oportuno amor.
Estudo a perfídia como um fenómeno
fatal, como se dela não fosse objecto.
Sinto piedade pelos jovens fascistas,
e aos velhos, que os considero formas
do mais horrendo mal, oponho
apenas a violência da razão.
Passivo como um pássaro que vê
tudo, voando, e leva dentro do coração
no voo em pleno céu a consciência
que não perdoa.

21 de Junho 1962,

In Poesia in forma di rosa, Garzanti, 1964


Lavoro tutto il giorno come un monaco
e la notte in giro, come un gattaccio
in cerca d’amore... Farò proposta
alla Curia d’esser fatto santo.
Rispondo infatti alla mistificazione
con la mitezza. Guardo con l’occhio
d’un’immagine gli addetti al linciaggio.
Osservo me stesso massacrato col sereno
coraggio d’uno scenziato. Sembro
provare odio, e invece scrivo
dei versi pieni di puntuale amore.
Studio la perfidia come un fenomeno
fatale, quasi non ne fossi oggetto.
Ho pietà per i giovani fascisti,
e ai vecchi, che considero forme
del più orribile male, oppongo
solo la violenza della ragione.
Passivo come un uccello che vede
tutto, volando, e si porta in cuore
nel volo in cielo la coscienza
che non perdona.


21 giugno 1962

Da Poesia in forma di rosa, Garzanti, 1964

Oku no Hosomichi 

Recebi um livro de Bashō que não me lembro de ter encomendado, 

Não é sequer um livro de haikus, é um diário de viagem, 

Não sei quem o enviou, provavelmente alguém que já me esqueceu 

E no entanto, julga conhecer-me, li a versão em português, 

Numa das últimas visitas a Portugal, terá sido alguém com lugares comuns, 

Mas distantes, como as ilusões que partilhamos, as mentiras em que escolhemos acreditar 

E as verdades que não quisemos ver, deve ter sido alguém que me teve 

Como ninguém e mesmo assim me deixou secar na certeza de um aperto estrangulador, 

De Bashō, prefiro a poesia, em cada haiku a eternidade na simplicidade, 

Um beijo que se toma sempre fresco a cada nova leitura, um olhar que não se apaga, 

Mesmo assim, fiquei feliz com o livro, como quando se encontra uma carta 

Do dia de São Valentim, entre os cadernos de escola, uma carta ridícula e inocente, 

Agora inócua, como todos os amores que se consumiram até à cinza, 

Contudo seguro o livro com tristeza, nunca o irei ler, há viagens irrepetíveis e ainda bem. 

São Paulo 

12.03.2020