3 Poemas de _pescoço x sobreviventes de Carla Diacov, Garupa Edições, 2021

Whatever it is, the way you tell your story online can make all the difference.

Whatever it is, the way you tell your story online can make all the difference.

x

sobreviventes deitados trocam
figurinhas repetidas
experiências amorosas repetidas
de bruços trocam
feito meninos que tocam trocar
sorrisos enigmáticos repetidos
trocam até cascalhos repetidos
balançam os calcanhares no ar repetido e trocam
viram as barriguinhas para o céu 
trocam o curso das nuvens repetidas
trocam andorinhas repetidas
repetem TROCO NÃO TROCO TROCO
trocam as pernas de lugar
trocam o lugar de estado
os joelhos com os joelhos dos joelhos mais jovens
o de joelhos tortos repetidos
trocam hálitos repetidos
trocam ar
sobreviventes trocam tudo
apontam calor nós nos cabelos
trocam fluidos inevitáveis repetidos
furos de guerras ecoadas
trocam repetida a terra de lugar
dormem com raízes parecidas a joelhos
sobreviventes dormem repetidos
de repetidas mãos dadas a sonhar
incertas repetições mais 
exatos epílogos mais 



:

não me sinto tão 
bem nunca me senti tão capada
não tenho a memória de estar
vibrante "As they say on my own Cape Cod"
sinto que deveria ter me dedicado ao
arco e flecha como dediquei o pescoço
à leitura de teorias UFO
acordo com essa pança cheia de melancolia
olho minha mãe me olhando 
minha cachorrinha me olha olhando minha mãe triste
já fui pega olhando uma lata
de molho de tomates no lugar errado
o rapaz me pegou pela mão perguntou meu nome
perdida mora por perto está sozinha
entre ervilhas eu disse
o molho entre ervilhas
comprei caqui mole e bistecas de porco
comprei a serralheria dos ouvidos açougueiros
nunca me senti tão amputada
o caminho me levou até minha mãe
minha cachorrinha olhando minha mãe triste me olhando morta
acho que seu pai tinha isso que você tem
e isso veio da conversa com a psiquiatra
isso não tinha CID e eu tenho pensamentos mágicos
trocamos a cidade a psiquiatra
me sinto bem pior
agora que sei ser vibrante com a não compreensão
do tigre CONVIVER
sei e posso e alcanço falar sobre minhas deficiências
sobre meus distúrbios
e isso assusta muito quem não me vê babando
errando as pernas letras assusta não conhecer
devo ser mesmo esse caqui mole olhando
a lata errada nos mercados
carla
ninguém fala moléstia no poema
carla é só uma lata fora do lugar
carla
"As they say on my own Cape Cod"
a vida é bonita e cheia de coelhos com trevos entre os dentes
o rapaz mais famoso da minha estante
me puxa pelos cabelos
perdida mora por perto está sozinha
uma lata errada
"a loucura é portátil"


é claro que a lata não é errada
carla e a lata
"As they say on my own Cape Cod…
partners in prosperity."



:

tenho uma memória inquieta
tenho um pescoço de criança
conforto em lã com cheiro de avô
lavanda
canela com leite morno
nada mau
diriam 
para uma casa abandonada
nada mau
dizem 
nada nada mau
comenta quem acabará por morder meu pescocinho mofo

"O desconhecido", de Aldo Palazzeschi

Tradução: João Coles



Viste-o passar hoje à noite?
Vi-o.
Viste-o ontem à noite?
Vi-o, vejo-o todas as noites.
Olha para ti?
Ele não olha em volta,
só olha lá para baixo,
alí onde o céu começa
e a terra acaba, lá em baixo
na linha de luz
que o pôr-do-sol deixa.
E depois do pôr-do-sol ele passa.
Sozinho?
Sozinho.
Vestido?
De preto, está sempre vestido de preto.
Mas onde se detém?
Em que sino?
Em que prédio?


Lo sconosciuto

L'hai veduto passare stasera?
L'ho visto.
Lo vedesti ieri sera?
Lo vidi, lo vedo ogni sera.
Ti guarda?
Non guarda da lato
soltanto egli guarda laggiù,
laggiù dove il cielo incomincia
e finisce la terra, laggiù
nella riga di luce
che lascia il tramonto.
E dopo il tramonto egli passa.
Solo?
Solo.
Vestito?
Di nero è sempre vestito di nero.
Ma dove si sosta?
A quale capanna?
A quale palazzo?

Aldo Palazzeschi, in Poemi

Microcosmos – Haikus

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“Faz o melhor que puderes e deixa para os deuses o que ficar por fazer.”

Yasunari Kawabata

1.

Numa folha de hortelã

a sede

da tua língua.

 

2.

Rosmaninho

inspiro fundo

a infância que resta.

 

3.

Ladram os cães

da vizinhança –

casas vazias.

 

4.

Não tem pressa

o Sol –

cantam os grilos.

 

5.

A sombra da rã

que salta

sobre o peixe vermelho.

 

6.

Arrefece o ar

coaxam as rãs

ao longe as rolas.

 

7.

Antes de ver

a minha sombra

esconde-se a lagartixa.

 

8.

Meu sangue

no toro de cerejeira

que racharei.

 

9.

“Caga no passado”

e limpa o cu

ao futuro.

 

10.

Aproxima-se uma tempestade

não interessa

está sol.

 

11.

Canta o cuco

lavram-se as terras

estou vivo.

 

12.

No campo lavrado

papoila solitária –

o teu sorriso.

 

13.

Pintam a primavera

os pássaros

a panela assobia.

 

14.

Que amanhecer

canta o galo

à hora do almoço?

 

15.

Na voz do irmão

ecoa

o amigo carpinteiro.

 

16.

No campo de rosmaninho

como o amor

secam os preservativos.

 

17.

Nos meus sonhos

tão vivo

quanto o sol depois da chuva.

 

18.

Dura mais um pente

que a juventude –

cabelos brancos.

 

19.

Brilha na couve

a gota de orvalho –

deixo a urina correr.

 

20.

Coaxam as rãs

ao sol –

amadurecem os figos.

 

21.

Pendura o hammock

meu pai –

figos verdes.

 

22.

No balde

ao lado do poço

a mesma água.

 

23.

As flores das favas

o canto do grilo –

anoitece.

 

24.

Sentado no banco

da feira

florescem as giestas.

 

25.

Regressa um rebanho

silenciam-se as rãs –

anoitece.

 

26.

Terra vermelha

a minha pele

ao sol no olival.

 

27.

Timidamente a rã

finge ignorar

a minha presença.

 

28.

Todas as promessas

de amor

o canto do grilo.

 

29.

Esvoaça um morcego

a rã salta

o grilo continua.

 

30.

Escovo a barba

sob o atento

olhar das rãs.

 

31.

Canta o cuco

toca o sino –

silêncio.

 

32.

Colhe cebolas

e alfaces a mãe –

aproxima-se o almoço.

 

33.

Estar assim

que as rãs

se aproximam.

 

34.

Sob o verde líquido

move-se rápida

uma pequena chama.

 

35.

Do outro lado

do muro

silêncio e vazio.

 

36.

Cantam os pássaros

as tardes

da minha infância.

 

37.

À beira do poço

não interessa

que passe a vida.

 

38.

Pequena célula

de um organismo maior –

nós.

 

39.

Sementes de nabo

levadas pelas formigas –

sementeira feita.

 

40.

Nada teme

o peixe

curioso.

 

41.

Na flor da fava

colhe o fruto

a abelha.

 

42.

A papoila

que agora colhi

já murchou.

 

43.

Arrefece lentamente

o café

do meu pai.

 

44.

Nunca só

no monte

agora menos.

 

45.

Sobre os milénios

do granito

décadas e o infinito.

 

46.

À sombra das algas

um peixe vermelho –

manhã de sol.

 

47.

O pai arranca

as couves velhas

e planta as novas.

 

48.

O sino interrompe

a declaração

da rã.

 

49.

Sob o olhar atento

das rãs

apanhamos sol.

 

50.

Na cadeira

o gato –

chuva de primavera.

 

51.

As vidas passaram

o rio

continua.

 

52.

Morango silvestre

maduro

sobre a língua.

 

53.

Espelho de água

o rio

nos meus olhos.

 

54.

Interminável mantra

de um grilo –

passo como um rio.

 

55.

Pedra sobre pedra

o muro

e a memória.

 

56.

À lareira

salada de agrião

treme o avô.

 

57.

É importante

perguntar

ao pó.

 

58.

Na manhã de sol

os chocalhos

das ovelhas.

 

59.

Flores de morango

quem comerá

o fruto?

 

60.

Urzes e carquejas

na flor da esteva

uma abelha.

 

61.

Olhos que vêem

as ruínas

que sabem das vidas?

 

62.

Cheiras-me ao monte

num dia quente

de primavera.

 

63.

A vinha do meu pai

à noite

é dos javalis.

 

64.

Sobre a figueira

cai a chuva

e o sol da manhã.

 

65.

Casa dos avós mortos

cai agora

o dente de leite.

 

66.

Revelado pelo sol

fino fio de teia –

manhã chuvosa.

 

67.

Amadurecem os figos

à chuva e ao sol –

manhã esmeralda.

 

68.

Café quente

à janela aberta

da manhã.

 

69.

Gentil chuva

de primavera –

o teu sorriso.

 

70.

A Lua não precisa

do meu olhar –

tenho que mijar.

 

71.

Sobre a ribeira

chuva –

papa-figos canta.

 

72.

Na língua

o sabor do café –

sol da manhã.

 

73.

Entre pesadas páginas

secam

as flores silvestres.

 

74.

Quieto na fraga

como uma árvore

ao sol.

 

75.

Na palma da mão

o mundo

rosmaninho e alecrim.

 

76.

Rosmaninho e alecrim

a frescura

dos teus lábios.

 

77.

Arrancando uma couve

meu pai –

“estás bem aí?”

 

78.

Neste trono de pedra

sou o rei

do alecrim.

 

79.

Sobre o canto das rãs

passa voando

uma andorinha.

 

80.

Minha mãe inquieta

meu pai triste –

onde para o gato?

 

81.

Dá horas

o sino –

“devia-se escachar.”

 

82.

Com sede

do teu corpo

bebo o sol.

 

83.

Sobre a lavanda

meu corpo o sol

e um caderno.

 

 

Abril-Maio 2021, Portugal (Torre de Dona Chama-Cidões)

 

 

 

Outro Aniversário

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“Já sou velho e nunca escalei o monte Fuji.”

Yasunari Kawabata

 

Em mais um ano acumulado nos ossos, nenhuma certeza se renova,

Somos apenas a distância que percorremos, no nosso pó futuro,

Tenho-me procurado longe, contudo, fiquei todo por onde passei,

Nas mulheres que amei, nas que apenas penetrei com tudo o que era

E não era grande coisa, somos um longo rastro de lesma,

Que as primeiras chuvas de outono apagam, como a sede do desejo,

A fome dos sonhos, o nosso nome das memórias dos que ficam.

 

Espanha? (Ar)

02.05.2021

D. J. Enright, O Quaga

tradução de José Pedro Moreira

A meio do século já só havia dois quagas,
e um dos dois era macho.
Os deveres do ofício pesavam sobre ele.
Quando se é o único macho da espécie
não é fácil levar uma vida normal.

Os bodes petiscavam e arrotavam em banal satisfação;
Corriam e deslizavam para cima e para baixo da sua montanha de cimento.
Um poderia cortar a garganta em vidro partido,
Outro vaguear demasiado perto da jaula dos tigres.
Mas eram maridos zelosos; e o recinto estava sempre apinhado,
O seu ar rançoso a pulsar com vozes simples.

O quaga, no entanto, era um homem marcado pelo destino.
A sua mulher, que ele conhecera em idade algo tardia,
Preferia dormir, ou queixar-se da comida e do tempo,
Pois o seu pequeno jardim era menos do que paradisíaco,
Com um sol artificial que ora queimava ora os regelava,
E a eterna presença de entendidos com câmaras,
Para perpetuar o único quaga macho no mundo.

Talvez seja por isso que fracassou em tratar do serviço;
Está tudo muito bem para bodes e macacos –
Mas o último macho de uma espécie está sujeito a pressões específicas,
Se o Satã de tempos antigos tivesse vindo a rastejar, talvez…
Mas em vez dele os entendidos, com câmaras e cadernos,
A escrever histórias tristes sobre a decadência dos quagas.

Até que uma tarde quente ele começou a armar uma confusão.
Este jovem quaga zangado escoiceou as grades e partiu uma câmara;
Tentou até morder o tratador incrédulo.
Protestou alto e em bom som contra isto e aquilo,
Até os outros animais ficarem bastante embaraçados,
Pois ele parecia que lhes estava a chamar nomes.

Então reparou na sua mulher, desperta pelo barulho,
E sentiu uma curiosa sensação a estremecer-lhe o ventre.
Ele era Adão: ali estava Eva.
Ao galopar até ela, a cabeça lançada para trás,
Tropeçou, e partiu uma pata, e teve de ser abatido.


The Quagga

By mid-century there were two quaggas left,
And one of the two was male.
The cares of office weighed heavily on him.
When you are the only male of a species,
It is not easy to lead a normal sort of life.

The goats nibbled and belched in casual content;
They charged and skidded up and down their concrete mountain.
One might cut his throat on broken glass,
Another stray too near the tigers.
But they were zealous husbands; and the enclosure was always full,
Its rank air throbbing with ingenuous voices.

The quagga, however, was a man of destiny.
His wife, whom he had met rather late in her life,
Preferred to sleep, or complain of the food and the weather,
For their little garden was less than paradisiac,
With its artificial sun that either scorched or left you cold,
And savants with cameras eternally hanging around,
To perpetuate the only male quagga in the world.

Perhaps that was why he failed to do it himself;
It is all very well for goats and monkeys -
But the last male of a species is subject to peculiar pressures.
If ancient Satan had come slithering in, perhaps…
But instead the savants, with cameras and notebooks,
Writing sad stories of the decadence of quaggas.

And then one sultry afternoon he started raising Cain.
This angry young quagga kicked the bars and broke a camera;
He even tried to bite his astonished keeper.
He protested loud and clear against this and that,
Till the other animals became quite embarrassed
For he seemed to be calling them names.

Then he noticed his wife, awake with the noise,
And a curious feeling quivered round his belly.
He was Adam: there was Eve.
Galloping over to her, his head flung back,
He stumbled, and broke a leg, and had to be shot.

D. J. Enright, Collected Poems 1948-1998