Era depois da oficina

i

Todos na casa são de vidro
na casa que não há mas que existe
Os sons das vidas que despertam
descem ou sobem até aqui
e mergulham fugitivos
neste quarto que é corpo e piscina  

Tudo se passa num décimo terceiro
andar o nevoeiro cola-se à janela
queres ver que o mundo se foi daqui
as aves grasnam agressivas
os patos ou os cisnes organizam
matinalmente com a língua
as crias no canal e há vida 

É hora do recenseamento diz o rapaz
que toca à porta mas é tão cedo para ver
num impresso a carne transfigurada
em números e letras
Eis que somos árvores
O rapaz move-se inquisitivo no hall de entrada
Quantos burgueses vivem aqui
há crianças? Vivos ou mortos?
Tem muitos mortos nos livros, coisas que se dizem,
o etéreo não lhe interessa
quer mais detalhes para o inquérito  

Vive-se aqui é-se a burguesa
nova e fresca um desejo
fazendo renda para cobrir o osso
ou a mesa que dói no polegar
de tanto tatear o pedal oculto no fundo do piano
da sua mão (de quem
que não dela poderia ela ser)
saem sis bemóis e da boca ais
e palavras em francês les bourgeois
c’est comme les cochons
ai ai ai j’aimerais boire un verre
de champagne ai ai ai  

ii

Ah, como é bom escrever poemas
quando há que comer  

Na ida diária da casa ao supermercado
havia três ou cinco sem abrigos é difícil
contá-los quando nós e o mundo
lixiviamos a vista e lixamos
de tantos a vida até a tábua ser
chata e rasa 

(há piscinas aqui com água clorada
o bairro tem biblioteca municipal
que já é mais do que tinha jesus cristo
de que se queixam então, dos deveres
a cumprir? Do longo desfile de mortos
vivos? Isso passa rápido - logo logo
a carta chega no destinatário) 

iii

À rua sai-se com a casa
é um facto conhecido
o seu peso ou leveza
marca-nos o passo e a fala  

sempre dando pra algum lado
portas e vidraças 
de dentro para fora de fora para dentro
e o mundo entra sai numa correria
de dois sentidos e a isso chama-se ver
e com um nome assim se tapa
o que há quem sabe por trás do detrás  

Que importa o que se perde se cada
dia reaparecemos de novo na casa
ainda que uns dias mais velhos 

Na rua anda-se pelo que me dizes
ser a avenida principal do mundo real
e não se cai. Isso sim é importante.
Trata-de dum dado a reter. Tudo isto
lembra aqueles versos conhecidos:
a casa não sei se a reconstruo
ou se na manhã na rua a refaço
mas sei que não a largo
 

Era depois da oficina ainda havia
mundo com gente vírus e vidas
mas que tinta a pinta? 

iv

Pudéssemos nós um dia sentar-nos
naquele banco utópico à entrada do parque
acolhendo a chuva de folhas douradas
dos dois antiquíssimos ginkgos biloba
no final de outono precisamente
a estação que passa agora
fora de qualquer linguagem  

eu sei meu amor dela não
podemos escapar
(nem do rapaz do questionário)
mesmo em ruínas ou aprisionando-nos
a fala mesmo se diversa a fala
é a nossa únicas casas

O perfil de João Vilhena pode ser lido aqui.

As nêsperas

Ainda não tinha visto a Primavera cá de casa.
No terraço ao lado há uma grande nespereira.
Lembro-me de comer nêsperas e gostar
do sabor meio doce, meio azedo,
e de a minha mãe dizer que as nêsperas
faziam nódoas.
Há certas pessoas
que são como as nêsperas que comemos –
não sabemos porque falamos nelas
se há toda uma vasta botânica.

O perfil de Ana Freitas Reis está disponível aqui.

Bagos de Bastardo


Nas folhas da videira

o reflexo da canícula –

silêncio no poço.

Com esta mão partida

ao que soarão os grilos

dos meus versos?


À volta da ermida

os toalhetes

dos encontros furtivos.

Quase impercetivelmente

a leve brisa e o tempo

arredondam as fragas de granito.

Arredondadas pelo tempo

e a leve brisa

as fragas de granito.

Há mais vento

quando passo

por choupos.

Quando passo

por choupos

há mais vento.

Gosto de me sentar

no silêncio do granito

ao vento.

Ah o som do vento

no granito

esculpido por milénios.

Como um beijo

de despedida

último sol de Agosto.

Nas silvas

do dólmen

a pena dum corvo.

Que rápido secaram

as amoras

dos caminhos.

Em cima da fraga

espero a tempestade –

vento de Setembro.

Chegará a tempestade

que o vento de Setembro

anuncia?

Semeadas de vazio

as casas onde

a ruína cresce.

Na muda presença

é onde habita

o maior silêncio.

Branco ainda

este sol

de Setembro.

Nas folhas da couve

brilham

refrescantes pérolas.

Bastou uma noite

para terminar o desassossego –

palha molhada.

Um banquete para pegas

e javalis

a vinha do meu avô.

Setembro –

do mosto

apenas uma memória.

Logo abraçam

as silvas

a fertilidade abandonada.

Onde crescem agora silvas

batiam-se

por um marco tombado.

Vinhas perdidas

lapides tombadas

eis o legado.

No meio do caminho

para a vinha perdida

cresce a videira brava.

Uvas da vinha velha

amoras dos caminhos

pequeno-almoço do poeta.

Na sua breve vida

o que teme

a borboleta?

À beira do rio

sentado

só eu passo.

Pequenas bolhas

o rasto do caminho

da lontra.

Açafrão do prado

no caminho –

aproxima-se chuva.

Nos bagos do bastardo

a doçura

das tuas mamas.

Setembro

regressam as moscas

do inferno.

Tarde de Setembro –

do que se despedem

os ramos da oliveira?

Agosto-Setembro 2022

Torre de Dona Chama-Cidões-Sabrosa


"Fim, meio, início", de Anne Sexton

Tradução: João Coles

Havia uma criança indesejada.
Abortada por três métodos modernos
agarrou-se ao útero,
enganchada nele
a construir a sua casa nele,
e de nada servia
boicotá-la.

À nascença
ela não chorou,
levou as palmadas,
mas não berrou -
em vez disso caiu-lhe neve da boca.

Ao crescer, ano após ano,
o seu cabelo tornou-se como uma rosa num vaso,
e sangrou pelo rosto abaixo.
Colocaram-lhe pedras em cima para manter
o crescimento em silêncio,
e embora pisassem,
não matavam,
embora a mortandade nela estivesse enredada desde o início.

Fecharam-na dentro de uma bola de futebol,
mas ela meramente encolheu-se
e fingiu que era uma acolhedora casa de bonecas.
Empurraram para dentro insectos para a comerem às dentadas
e ela deixou-os rastejar para dentro dos olhos
fingindo que eram um espectáculo de fantoches.

Mais tarde, mais tarde,
já crescida, como soem dizer,
deram-lhe um anel,
e ela usou-o como uma raiz
e disse para si própria,
“Não ser amada é a condição humana,”
e estendeu-se na cama como uma estátua.

Então uma vez,
por um terrível acaso,
o amor tomou-a no seu grande barco
e ela escavava o oceano
em escaldante alegria.

E então,
lentamente,
o amor esvaiu-se,
o barco transformou-se em papel
e ela, por fim,
sabia qual o seu destino.
Vira para onde pertences,
para o surdo-mudo
aquela casa de metal,
não deixes que ele te perfure em ninguém.

Do livro póstumo 45 Mercy Street.


End, middle, beginning

There was an unwanted child.
Aborted by three modern methods
she hung on to the womb,
hooked onto it
building her house into it
and it was to no avail,
to black her out.

At her birth
she did not cry,
spanked indeed,
but did not yell-
instead snow fell out of her mouth.

As she grew, year by year,
her hair turned like a rose in a vase,
and bled down her face.
Rocks were placed on her to keep
the growing silent,
and though they bruised,
they did not kill,
though kill was tangled into her beginning.

They locked her in a football
but she merely curled up
and pretended it was a warm doll's house.
They pushed insects in to bite her off
and she let them crawl into her eyes
pretending they were a puppet show.

Later, later,
grown fully, as they say,
they gave her a ring,
and she wore it like a root
and said to herself,
'To be not loved is the human condition,'
and lay like a statue in her bed.

Then once,
by terrible chance,
love took her in his big boat
and she shoveled the ocean
in a scalding joy.

Then,
slowly,
love seeped away,
the boat turned into paper
and she knew her fate,
at last.
Turn where you belong,
into a deaf mute
that metal house,
let him drill you into no one.

3 poemas de 'Prata' de José Pedro Moreira

desabar de pontes
derrames nas pernas
desalinho do cabelo com toques de prata
ela
Gugu
ainda que coxa
é um bosque cego
à espera
de uma faúlha

triciclos esquecidos no quintal
oxidados
as rodas rangem
se as tentas mover no seu eixo

em frente
sempre em frente
Gugu
até no nosso
velho triciclo
para lá de conserto
o progresso
é inevitável


Gugu
a casa abate-se
tudo cai em nosso redor
lá se vai o candeeiro da vovó
o relógio de cuco do vovô
o sótão
com todos
os caixões lá arrumados
os quartos das crianças
a possibilidade
de haver crianças
ao menos agora
sabemos com o que contar
só tu e eu
Gugu
ao menos agora
podemos
dormir em paz
achas que voltarão agora
os lobisomens
com os seus
corações de prata
os beijinhos retorcidos
as jogatanas de cartas
levadas até à nudez?

eles têm
as suas mulheres
os seus trabalhos
os seus homens
e está certo
todos precisamos
de distracções
se estivéssemos atentos
víamos o carro
a atropelar o veado
e o veado
somos nós
e de nada vale a ternura
apelos filiais
a probabilidade
de estarmos em falência
em luto constante
excepto
nos dias de festa
nos dias de festa
queimamos ateus


sim
finalmente
por demais óbvia
a espessura da tinta

negra

o pássaro
também ele negro
bebe da taça
onde repousa
a nossa canetinha

contemplamos
o espectáculo

a primeira
das crias
que o gatinho trouxe
estava morta
mas a segunda
vivia ainda
pouco depois
o corpo
imóvel e frio
nada a fazer
o corpo no saco
como mais
um pedaço de lixo
não reciclável


José Pedro Moreira, Prata, Flan de Tal, Setembro de 2022