"como mártir diminuendo", "ruas míopes ao tacto", "e se eu morresse tanto"

como mártir diminuendo
no êxodo de uma sombra
em bucólico andamento

a maestrina arte de varar
os velos dos choupos
as cânulas das flores

a sanguínea corrente
que inflama o dragoeiro
cujas pernadas se movem

braços dançam-nos inteiros.


ruas míopes ao tacto
correr em despedaço
o nosso passo desvagar

estilhaçar o tempo em
cabeça tronco e membros
e entrar por ele adentro

como quem reza de mãos
cegas rasgadas sob um livro
e determo-nos num só verso:

o tempo é todo em dores.


e se eu morresse tanto
de novo e de velho que
de muitas mortes o meu
corpo se tingisse que a
minha boca de raízes e
torrões se entreabrisse e
descobrisse no interior
do palato uma língua
dum estrangeiro falar

e eu morrendo tanto e
tantas e muitas vezes
morrendo de vez estas
mortes tão completas
morrendo quer de saúdes
quanto de doenças morrer
meio de improviso e todo
duma morte certa.

Tadeusz Rożewicz, Monumentos

Tradução de João Ferrão e Anna Kuśmierczyk

Os nossos monumentos
são ambíguos
têm a forma de um buraco

os nossos monumentos
têm a forma
de uma lágrima

os nossos monumentos
construiu sob a terra
a toupeira
os nossos monumentos
têm a forma do fumo
vão direitos ao céu

1958


Tadeusz Rożewicz (1921-2014) foi poeta e dramaturgo polaco. Nasceu em Radomsko, perto de Łódż, filho de uma judia convertida ao Catolicismo. Estudou em Cracóvia e no final dos anos 1940 mudou-se para Gliwice, seguindo mais tarde para Wrocław, onde morreu. Durante a Segunda Guerra Mundial foi soldado da Armia Krajowa (Exército Nacional), o mais importante movimento de resistência polaca. O seu irmão Janusz, também ele um promissor poeta e membro da AK, foi assassinado pela Gestapo em 1944.

A sua poesia é marcada pela experiência do Holocausto e pela responsabilidade de quem lhe sobreviveu. Face ao aforismo de Adorno de que não se pode escrever poesia após o Holocausto, Rożewicz procurou uma poética nova, longe dos artifícios retóricos até então comuns na Literatura Polaca. Os seus poemas caracterizam-se por versos curtos, quase como se fossem esqueletos de poemas, um vocabulário minimalista e a ausência de metáforas. 

Foi também um dramaturgo inovador e bem-sucedido, e as suas peças continuam a ser encenadas nos principais teatros polacos, principalmente Kartoteka (Ficheiro), publicada em 1960. Recebeu em 2007 o Prémio Europeu de Literatura pela sua obra, e foi várias vezes candidato ao Prémio Nobel. 

Sobre 'Imagens Roubadas', de Fernando Guerreiro

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Em 2016, Fernando Guerreiro publicou El Dorado: Cinema e Modernidade, no qual desenvolveu a hipótese geral de que o cinema é a arte por excelência daquilo a que se pode chamar a época moderna. Uma vez que o próprio argumento do autor era de natureza histórica, a estruturação do livro em cinco capítulos respondia a diversos marcos particulares, cronológicos, nos quais o problema da modernidade do cinema se impôs com uma intensidade especial. O primeiro capítulo posicionava-nos no século XVIII, numa altura em que, segundo Guerreiro – e a partir da análise da crítica de Diderot e de pintores como Vernet ou Loutherbourg – “o cinema [estava] a vir como uma nova exigência” (13). No segundo capítulo, Guerreiro voltava a pegar de cernelha no cinema, agora debruçando-se sobre a literatura modernista, entre o futurismo italiano e a geração de Orpheu. No terceiro capítulo, sobre a Primeira vanguarda francesa, o cinema começava a afirmar-se como o ponto de partida da análise, com a discussão de Gance, L’Herbier e Epstein. O quarto capítulo dedicava-se quase exclusivamente a Manoel de Oliveira, desde Douro, Faina Fluvial a O Estranho Caso de Angélica, num passo que estilhaçava a estrutura que vinha sendo seguida (em função de coordenadas históricas), mas que ainda assim respondia a um princípio de coerência, ao visar o corpo da obra de um único cineasta. Apenas o último capítulo, curto, de cerca de vinte páginas, rompia decisivamente com a ideia de ordem sobre a qual o livro se vinha estruturando. Com o título “Ecoplastias”, era composto por secções conectadas mais ou menos livremente, convocando de forma aparentemente desordenada as diversas ideias-chave que atravessavam o livro. Se em cada um dos quatro capítulos anteriores a reflexão estava ao serviço de um escopo de análise claro que conduzia o pensamento (a pintura do século XVIII, os modernismos artísticos, as vanguardas dos anos 20, o cinema de Oliveira), no último, o raciocínio libertava-se da determinação e vagabundeava.

Um dos livros mais importantes publicados em Portugal sobre cinema, Cinema El Dorado: Cinema e Modernidade é a expressão de alguns dos aspectos que tornam o pensamento de Fernando Guerreiro particularmente desafiante. Olhando para ele com a distância temporal de mais de um ano, apercebo-me de que se trata de um livro que existe em tensão, justamente porque obedece a um princípio de forma inquestionável – pois a estrutura é rígida e imediatamente inteligível – , e, no entanto, corporiza-se numa malha textual que parece desejar sempre transgredir os mesmos princípios de ordem que o índice prescreve para conveniência do leitor.

Isto prende-se com a natureza da escrita de Fernando Guerreiro. É evidente que esta não se trata de uma escrita límpida, assente nos pressupostos da clareza da expressão, isto é, ideias claras e simples, sintaxe escorreita: todas aquelas alíneas que facilitam a aceitação de um artigo numa revista académica com arbitragem científica (algo que não interessa nada a este autor, que não deixa por isso de ser um dos nossos académicos mais respeitáveis). Há que sublinhar, no entanto, que isto não acontece por Guerreiro não querer comunicar as suas ideias, desconsiderando o leitor. Isto não se se coadunaria sequer com o carácter deste autor, cuja generosidade invulgar é bem conhecida no meio académico, e em particular entre os seus alunos. A sintaxe de Guerreiro é tortuosa – com parentéticas dentro de parentéticas, extensas notas de rodapé, jogos de palavras que interrompem o fluxo da leitura, etc. – porque ele parece recusar a ideia de que a linguagem deve funcionar como um instrumento de esclarecimento. Pelo contrário (e isto pode ser polémico), coincidindo com a sua natureza espúria, suja, ela deve efectivar-se enquanto instrumento privilegiado de obscurecimento, não necessariamente no sentido de interromper o acesso à verdade cristalina – que também não nos interessa, porque provavelmente nos cegaria (ou seja, o caminho para o esclarecimento seria um caminho para a cegueira) –, mas no sentido de instaurar uma espécie de nevoeiro que se constitui como o meio ambiente privilegiado para o diálogo e para o contágio (porque afinal estamos a falar de escrita e de leitura, e, portanto, de traços, pegadas, ecos, impressões e percursos/deambulações).

No entanto, ao instaurar este nevoeiro, Fernando Guerreiro não se coloca fora dele. Pelo contrário: inclui-se nele, habita-o e predispõe-se à coabitação. As imagens que a sua escrita convoca são difusas porque, por vezes, as ideias que elas veiculam são também difusas, móveis, metamórficas, elusivas. E, nos dias que correm, reivindicar uma lógica de discurso que não visa o esclarecimento – e sim a aceitação de uma ignorância produtiva, digamos assim – revela uma coragem que não é para ser admirada, mas fundamentalmente adoptada e partilhada. Porque talvez seja cómodo categorizar-se Fernando Guerreiro como um pensador entre o geek e o alucinado, com tanto de génio como de louco, algo excêntrico e singular, estrela erudita do rock e – por todas estas razões – inequivocamente digno da admiração de todos nós. Em suma, um ícone. Mas esse gesto – que, de resto, se verifica efectivamente em alguns meios – embate na própria poética do autor. E digo “poética” com a noção bem clara de que o Guerreiro poeta e o Guerreiro ensaísta são em última instância indestrinçáveis – o que, justamente, se prende com esta criação de uma zona (de interface, claro está) onde reina o nevoeiro, o instável, o difuso, que informam o seu discurso mesmo em meras conversas de café.

Categorizar Guerreiro como “aquela personagem (genial) da academia portuguesa” é o primeiro passo para passar ao largo do que ele nos pode oferecer, justamente porque esse julgamento assenta em princípios que são absolutamente excêntricos ao seu universo. Não lerão em nenhum dos seus textos expressões como “o mais belo filme” ou “o melhor cineasta”, etc. E isto acontece porque este tipo de julgamentos acontece ao nível mais epidérmico, achatado, do pensamento. E para Guerreiro, o pensamento – e a escrita, enquanto expressão desse pensamento – existe em profundidade, e esse movimento de perfuração do qual a sua escrita é extraída à picareta (dir-se-ia, minada) explica a atracção de Fernando Guerreiro pela raiz, pela etimologia, pelo sentido fundo, às vezes primordial, das palavras e dos conceitos que elas transportam, recuperados na sua forma plena e aguçada, que ainda não se fez gasta e romba pelo uso vulgar. E é por isso que o lugar-comum está nos antípodas desta linguagem. Mas não é calculada e estrategicamente que se leva a cabo esta perfuração do solo rumo ao centro da terra. Nos textos de Fernando Guerreiro, acontece por vezes não haver uma ideia clara e abarcante à qual o seu leitor se possa segurar como uma bóia, nem uma argumentação estruturada que pretenda paulatinamente persuadi-lo de que está perante um argumento final efectivamente pertinente e sólido (e como percebem, a solidez, aqui, existe para ser dissolvida). Quando falo em pensar em profundidade com Guerreiro, falo em mergulhar com ele nas águas turvas do lago em frente da casa de Usher, em aceitar que só se pode ver tudo de esguelha e de relance, e partilhar essa visão fugaz, e discuti-la. E, na discussão, as coisas ganham formas e o mundo (re)faz-se. Isto significa que, nos ensaios de Fernando Guerreiro, a escrita sobre os filmes não é, na verdade, apenas uma escrita referencial – que se reporta a outras coisas: filmes, narrativas, imagens –, mas uma escrita com uma pulsão criativa em pleno sentido. E neste âmbito a ideia de poiesis, como saberão, é outro dos tópicos que ele foca frequentemente nos seus textos.

Quem leu Guerreiro percebe que os vários elementos que tenho vindo a identificar na sua escrita espelham-se na natureza da sua reflexão sobre o cinema e as imagens. No centro deste pensamento residem, parece-me, duas questões: em primeiro lugar, a tentativa de pensar para além do carácter mimético da imagem de cinema – isto é, a dimensão representativa deste meio na relação icónica e indicial que ele estabelece com o real visível –, e em segundo lugar (e isto articula-se com a primeira questão, porque ao ícone e ao índice vai adicionar o símbolo, que julgo ser a dimensão que interessa verdadeiramente ao autor), os efeitos do cinema no humano e a reconfiguração que este sofre à medida que voluntariamente se expõe à experiência de ver filmes e se torna, tomado pela promiscuidade ontológica entre os dois mundos, também ele uma criatura de cinema.

Recuperando Cinema El Dorado, percebemos que estes são afinal os problemas de ordem teórica que interessam ao autor, e que as coordenadas históricas que dão forma ao livro são fruto, na verdade, da circunstância de estes problemas se terem manifestado de maneira mais contundente nos períodos escolhidos por Guerreiro para focar ao longo do livro. Lembro-me de já ter sugerido noutra ocasião que se comece a ler esse livro a partir do curto capítulo final, “Ecoplastias”, precisamente porque o desprendimento das suas páginas, bem como o seu carácter em bruto ou em ruínas (o que são ideias perfeitamente opostas, mas que aqui têm um valor correlato), promovem um contacto mais directo – sem o filtro da inteligibilidade do discurso – com o pensamento de Fernando Guerreiro, que responde, creio eu, muito mais à forma do free jazz (como ele próprio talvez dissesse) do que a uma forma mais canónica de composição.

Quero com tudo isto concretizar a ideia de que nas últimas vinte páginas vagamente informes do seu livro anterior estava já o princípio de forma segundo o qual Fernando Guerreiro viria a conceber Imagens Roubadas, que acaba de ser publicado pela enfermaria 6. O livro colige uma série de textos publicados anteriormente em revistas e em sites, e, embora ele esteja dividido em capítulos que mantêm uma certa ideia de coerência e ordem (nomeadamente ao nível da proveniência dos textos), esta é, na verdade, menos impositiva do que nos anteriores, não se fundando, por exemplo, em elementos de ordem histórica. Este é, assim, o livro de escritos sobre cinema, ao estilo free jazz, que Guerreiro ensaiava, a espaços, há muito tempo, isto depois de Cinema El Dorado ter atingido o outro marco importante de se tornar o seu primeiro livro inteiramente enquadrado no âmbito do que se convencionou chamar estudos fílmicos.

Há vários aspectos a considerar na análise de Imagens Roubadas, sobre os quais não me poderei debruçar aqui. Refiro apenas que, na sua maioria, os textos são muito curtos ou fragmentários; não há notas de rodapé, o que vai ao arrepio da escrita que conhecíamos dos livros anteriores; e a própria natureza dos textos é diferente – menos referencial, menos histórica também, com uma vertente mais especulativa e, por vezes, até, abertamente poética (tal como o livro anterior, este termina com um poema). Sente-se talvez, aqui, o fantasma desempoeirado de Poe de Eureka (poema-ensaio por vezes aqui referido) – que é, parece-me, um dos textos fundamentais no universo de Guerreiro, não tanto pelo que diz, mas essencialmente pela sua predisposição para a metamorfose, o aberto, o devir – noções essenciais para este autor.

Para concluir, e tal como para o livro anterior elegi o capítulo “Ecoplastias” como um passo particularmente relevante na compreensão da mundividência de Fernando Guerreiro, gostaria agora de fazer o mesmo a propósito de Imagens Roubadas. No início de uma recensão a Cinema El Dorado, ao apresentar sumariamente o autor, destaquei um conjunto marcante de textos publicados na revista Vértice, entre 2000 e 2013. Estes textos foram retomados por Guerreiro para o novo livro, inteiramente transformados e adaptados a um capítulo estruturado por alíneas. Trata-se do capítulo inicial, “Grãos de Pólen”, que, para além de constituir uma versão actualizada (e revista) do capítulo final do livro anterior – repetindo inclusivamente algumas passagens (com variações) –, torna-se inevitavelmente o novo breviário para compreender o pensamento de Fernando Guerreiro sobre o cinema e as suas imagens. E digo-vos isto em jeito de dica, mas que não vos demova de lerem todo o resto.

 

 

 

(este texto foi lido, nesta mesma versão, na apresentação de Imagens Roubadas, de Fernando Guerreiro, na livraria Linha de Sombra, no dia 19 de Janeiro de 2018)

Tempestade das mãos (recensão)

Capa-TEmPESTADE.jpg

Vem a propósito citar Slavoj Zizek, que surripiou a ideia a Gilles Deleuze, que por sua vez a tinha roubado a Marcel Proust, que também a tinha encontrado, mais do que criado: “o pensamento nunca chega à luz do dia espontaneamente, per se, na imanência dos seus princípios; o que nos incita a pensar é sempre um encontro traumático, violento, com um real exterior que se nos impõe brutalmente, pondo em causa as nossas maneiras habituais de pensar. Um pensamento verdadeiro, enquanto tal, é sempre descentrado: não pensamos espontaneamente, somos forçados a pensar.”[1]

I

Ora, André Domingues suplementa e não suplementa esta ideia. O livro que acaba de lançar para o meio da micro comunidade dos leitores de poesia (só podiam ser poucos), trabalho editorial da Debout Sur l’Oeuf, Coimbra 2017, 61p., sacode quem o abre (o título é um aviso), mas ao mesmo tempo parece haver uma distância sã entre a intensidade poética da escrita e aquilo que somos capazes de receber (o “pathos da distância” de que falava Nietzsche). É como se André Domingues não nos quisesse dar tudo, não por ser avarento, mas porque o seu jogo poético é realmente singular, na Tempestade das Mãos vemo-lo a compor poesia e a compor-se a ele mesmo, a fabricar-se, a subjectivar-se. É por isso que devemos encontrar a linha de leitura fora dessa vontade tão habitual de a partir da intenção da obra enxertarmos uns galhos com a nossa visão do mundo. Podemos também entender isto como um respeito quase messiânico pela alteridade do leitor, deixando-o a braços com uma incubação pessoal do que recolhe no seu livro. O messianismo não trata somente da salvação, mas também de gestação experimental de moléculas demiúrgicas, algumas maléficas. Neste sentido, o mito, essa magnífica potência do falso, sempre foi messiânico.
Por outro lado, há encenações e sugestões às quais é difícil ficar indiferente, por exemplo quando escreve:
[…]
E contra os grandes declives da língua
perder o verbo, perder o sítio, poder abrir
com a boca o fecho do teu vestido
e a própria corrida contra o tempo
tornar-se ardente como o eco, a noite
os cabelos da hora dispersos
[…]
(“Cegas Transparências”)

Toda esta imagética do movimento, descendente, e decadente, cronometrada por um tempo apressado, movimento que produz incandescências no espaço indistinto do eco e da noite, para, finalmente, encaixar a zona erógena dos cabelos num medidor abstracto; toda esta potência sugestiva só pode obrigar-nos a pensar, um pensamento emotivo, claro. Há mesmo tentativas de André Domingues fazer genealogias antropológicas, procurando desenhar as possibilidades do humano actual: “vínhamos de noite como animais estendidos / à sombra de uma enorme metrópole. […] Vínhamos claros e sonoros como dádivas desfocadas. […] a casa fulminada / os bosques descalços / os rostos sem rosto.” (“Todas as fontes”).

Mas se quiséssemos, como agora é já um hábito fazer-se, escolher o que prevalece no estilo de André Domingues, diríamos que da mesma forma como a “saia que esvoaça para além do previsto! (“O baloiço”) as suas palavras emergem e projectam-se fora de qualquer previsão inteligível (embora se deve atender aos presságios), sobretudo de uma inteligibilidade poética conservadora. São pura heterogénese, elas vêm a nós sem os protocolos que pré-determinam o sentido, ou sentidos. São uma tempestade de palavras, alimentada por forças hiperbólicas que chegam de todos os lados. Se há uma lei mínima neste livro de André Domingues, é a lei da noite, de uma obscuridade fecunda que remete para os recantos mais periféricos do Cosmos (“Tu, por detrás da transparência”), onde nascem os centauros. Talvez por isso seja uma poesia que gosta de ser dita, o sopro de André Domingues nas brasas do seu fogo sagrado precisa de ser ouvido. É esse fogo que ilumina a noite, não para mostrar impudicamente os contornos das coisas, mas para espalhar um halo de calor vivificante nos vendedores do desespero. Da mesma forma, o silêncio que se adivinha por detrás de tantas palavras é combatido por clamores genéticos: “Eu grito / porque quero / originar.” (“A casa”). 

II

Em Tempestade das Mãos, escapando, como disse, das mãos sapudas de certos leitores agrimensores, André Domingues sente-se livre para refazer os códigos comuns dos significantes (“Por vezes sinto o pânico de uma estrela. / Por vezes piso o palco do mistério.”), e no entanto percebe-se uma vontade de que o leitor apanhe alguns fios do novelo da comunidade metafísica da linguagem, uma comunidade mínima, os poetas guardam e projectam algo raro, um sentido raro e no entanto vital: talvez a ontologia da linguagem. Não da linguagem toda, como queria Heidegger, da linguagem dos afectos, que conjugam emoções com descrições e esperanças. O trabalho deste livro é também o de refazer os acordos linguísticos tradicionais, renomear a vida e a morte, mas sobretudo os gestos humanos de quase todos os dias com sintagmas tensionais, feitos de um agon inesperado entre palavras: “tudo se eleva numa imóvel e imensa derrocada” (“Anatomia da Melancolia”), “uma irradiação de ideias fixas” (“Salvo este crepúsculo”) ou, entre outros, “beijávamos flores armadilhadas” (“O ausente”, o meu poema preferido). Por isso, olho para o seu livro como um fluxo em ziguezague, nada é linear, tudo é rizomático. Uma heterogeneidade especial das partículas poéticas que compõem os poemas, como se cada palavra vivesse uma certa soberania na ligação, agónica ou de cumplicidade trágica, com outras palavras. São palavras-força, mais do que palavras-significado. Muitas vezes auto-referenciais, e quando abrem para um qualquer sentido, percebe-se que se trata de algo por vir. Tanto mais que André Domingues trabalha as palavras até ao limite que toca no enigma que as originou. Uma poética agónica à procura de outra fonte linguística, reinventar a língua, mais com ferramentas nostálgicas do que utópicas.

A uma passante

A dupla nacionalidade do sorriso.
O corte longitudinal do olhar.
O teu ar de crianças sentada no colo
da criação.

Não era difícil de adivinhar
que mantinhas uma relação séria
com a efemeridade.

III

Mas nada está atomizado, não se trata de uma poesia de dicionário. O autor (ainda se pode usar este termo?) é um artífice das palavras, já o disse, as suas injunções improváveis reforçam o poder semântico do jogo poético, há uma lógica molecular que passa bem sem os sistemas taxonómicos rebeldes que normalmente organizam os desvios ao senso comum. As revoluções são aqui delicadas, quase gentis, trata-se de recompor os elementos da língua sem a violência de um novo acordo linguístico. Apesar disto, há muitas histórias neste livro, inverosímeis à superfície, mas que despertam no leitor memórias de aventuras, bastantes cheias de estratégias erógenas. A inventividade está também em reunir, ou não separar, o orgânico e o inorgânico, revisita-se o Crash de David Cronenberg em “A emergência da rosa”:

[…]
Através do vidro recorto-te o perfil
de dama reservada na culminação
da carruagem
estou já dentro do diálogo
que as tuas pernas nuas travam
com o banco impávido do metropolitano
[…]

E revisita-se Giorgio de Chirrico, que está em múltiplos lugares do livro, justamente a desfazer a geometria dos milhões de páginas que compõem, com dogmas, a sintaxe imagética do mundo:

[…]
Havia ainda o vulto de um piano ao longe
lá onde a sombra das persianas persistia.
E tudo era exactamente impreciso e consentido.
Como uma verdade perfurada.
(“Permanências pobres”).

Um livro de desconstrução feliz (felicidade cósmica), à procura de leitores atentos e corajosos, sem grelhas, que saberão receber os apertos poéticos de André Domingues e fazer deles um trampolim para se tornarem, pelo menos ligeiramente, diferentes. É para isso que cá andamos, não? Para nos tornarmos diferentes! Acabei do vos dar, com o autor, a “mais recente claridade das promessas” (“O plano da discórdia”).


[1] A Subjectividade Por VirEnsaios Críticos sobre a Voz Obscena, Lisboa: Relógio D’Água.

são as mãos; é mais fácil; não é assim que se desconstrói

 

são as mãos—
as mãos, os dedos
este emaranhado
de linhas

são as mãos
que cravam
buracos
como touros
e seus chifres
no tórax
de um toureiro
espanhol

são as mãos
que moldam
derretem
geram
outros incêndios

são as mãos—

balançando as folhas
como uma brisa
da montanha

são as mãos
           de safo


é mais fácil
ter facas à mão
do que frutas
o açúcar
que se oferece
frente ao gume

é mais fácil
se manter à
cozinha do
que à cama
por causa
do fogo
das facas
como diz
o poema
               I sharpened knives
               All night.
               To welcome you
               In the brilliance of their blade,

é mais fácil
aos que correm
com facas
construir uma
casa
em meio de
chamas


não é assim que se desconstrói
uma casa começa-se sempre
por objetos afiados

e onde os guardamos

    gavetas armários armários
    dentro de outros armários

começa-se pelas facas
tesouras
vidros with sharp
edges
uma casa começa
sempre
pela cozinha

não é assim
que se constrói
uma casa
dizem
é pela base
e pelas colunas

a cozinha sempre
vem depois
das colunas das janelas
e por vezes
dos quartos

os objetos cortantes
devemos guardar
debaixo de travesseiros
não em gavetas
distantes 

devemos dormir
na cozinha onde
há facas fogo e fica
fácil escapar &
destruir tudo aquilo
que chamam
              casa