a felicidade efémera de antífon, pintor de vasos ateniense, ca. 490 a.C.

Vaso de figuras vermelhas, ca. 490-480 aC, oriundo da Ática e encontrado em Orvieto. Atribuído ao pintor Antífon. Hoje no museu Ashmolean, em Oxford.

Vaso de figuras vermelhas, ca. 490-480 aC, oriundo da Ática e encontrado em Orvieto. Atribuído ao pintor Antífon. Hoje no museu Ashmolean, em Oxford.

a partir de C. P. Cavafy

pistachos e solidão
enchem a oficina do chão ao tecto
durante as noites de outono
lá fora a chuva que cai a cântaros
dá cabo dos nervos e é
uma forma de medir o tempo
humilde no escuro como uma romã
e escuridão é o que atravessa o vermelho
das sementes derrubadas sobre a mesa
e alguma espécie de má sorte
tem-me acordado toda a noite
rumino lentamente tudo o que me preocupa
inutilidades banais disputas com outras artesãos
todas as parvoíces que não me deixam
fazer o meu trabalho em paz
e conto as minhas pequenas alegrias
elas deixam-me sempre perplexo
as suas sementes semeio-as no escuro
elas contêm a noite e vão
um dia talvez chegar à primavera
que chegará muito depois
de eu ter deixado
os tigres caminharem sobre o meu peito
sem razão
também no que parece ser escuridão
um negro absurdo e absoluto
farei iluminar a sua figura que agora me foge
ao centro sentado absorto no seu trabalho
o seu nome e o meu hão-de desaparecer
e esse esquecimento
outra forma de alegria
será o selo do nosso segredo
mas ele será ainda mais esquecido do que eu
porque é ainda mais efémero o seu trabalho
os meus traços sobre a superfície
farão o seu rosto a princípio parecer
mais indefinido
e de mim será dito que preferi sempre
pintar nos vasos
cenas com rapazes aristocráticos atenienses
e batalhas míticas para
serem vistas e adoradas em banquetes
por ainda mais rapazes
aristocráticos atenienses
cenas onde se pode observar
os mais respeitáveis heróis gregos
os mais sangrentos mitos da grécia
os arqueólogos notarão
que são poucas as mulheres
que surgem nos vasos onde se pode reconhecer
a minha mão, a mão por que será reconhecido o meu nome
que não será já o meu nome
mas o nome que outros me terão dado
em virtude de serem reconhecíveis os meus traços
os meus padrões, mesmo na solidão de mínimos cacos
nas imagens que ficarão perdidas para sempre
elaborados pormenores deixarão
emergir o meu verdadeiro nome
e que se entenda que foi meu o meu trabalho
que este trabalho
por certos pormenores se fez famoso
e não há nada de errado
em um artesão capaz querer viver
em paz
da sua arte
com uma certa dignidade
mas não nesta noite
e não para o trabalho deste vaso
que será descoberto muito longe de onde
se passou esta cena e esta cena devia
ela própria ser efémera
nem tu pensarás de imediato
em páginas saídas da história
em gente como dario ou xerxes ou nos anos
em que os malditos persas
atravessaram o helesponto
para nos darem o inferno em atenas

este jovem que não é nem aristocrata
nem efebo mítico nem terá nome
ficará assim pacientemente sentado
diante do capacete que foi o seu trabalho
esculpir de uma só peça
atento, quase imóvel, quase vencendo o tempo
à velocidade de uma corrida mortal
a sua mão alonga os gestos
que terminarão o trabalho que não é o meu
esta intenção opressiva esculpida no bronze
a força desta leveza quase luz fazendo inchar o peito
até ao transporte final das imagens através da escuridão
transformadas em incêndio e pelo fogo visíveis
antes queria não ter sabido nada disto
queria tê-lo deixado dormir quieto na oficina
entre os pistachos e as romãs
aconteceu então
embora eu não o tivesse entendido
que foi minha uma coisa breve do mundo
de repente um rosto reconhecido
e esta outra arte mais difícil de dominar
muito dificilmente conquistada
aquilo que aqui se pode ver agora
uma efémera lei do caos, indecifrada

Tatiana Faia, Oxford
30 de Setembro de 2019

A Hora Mais Escura


“Te visitan em la hora más oscura todos tus amores perdidos.”

Roberto Bolaño


É nesta época de máscaras, fogueiras e cemitérios, da despedida definitiva

Ao que do verão restou, que todos os amores perdidos, todos de uma vez,

Visitam o silêncio amargo que se instala na letargia da alma arrefecida

Pela longa escuridão dos dias, todos de uma vez, confundindo-se

Numa massa incorpórea de carne, nomes, vozes e promessas,

A cor dos olhos de um com as curvas e ausências de outros, todos aqueles

Cheiros nestas mesmas mãos vazias, gostava de ter lido Bolaño no Outono

Da minha juventude, teria se calhar tocado menos e agarrado mais,

Evitaria coleccionar tanta ruína, nomes no vazio, pedras nos bolsos,

Ou não, quem me visitaria agora, se não esta gloriosa ausência,

Aconchegante como uma lareira onde arde a última lenha numa noite de apagão.



Turku

03.11.2019


ERASED TATIANA

76199277_10157140469937982_7380721940341719040_n.jpg
75456694_10157140470167982_1852865680521560064_n.jpg

TORN

           ado*

 

 

                      de colhão para colhão:

                        - não escapas!

                             - Sena

 

a rose

love

freedom

 

 - Glyniadakis

 

 

 

Sem

os doidos

da

compaixão

o mundo

seria

a

peste:

a morte lenta que se agarra a tudo.

É a velha

bola entre prozac e xanax.

 

O menino de bibe

liga para a mãe para apurar o grau de

bacalhau

são -

o único garante vital.

 

O país do puro pássaro é

o meu fantasma:

 viver

junto do mar

nem para

goya  -

esperança cara!

 

No inferno periférico

os

meus  filhos

nascerão ingleses

- cidadãos do mundo -

e  eu zangada

mato

a

menina

educada

a arte de habitar

a solidão de uma cozinha.

 

Abençoada

taxista da nação

poeta

neste país

de vegetação

cortada

calcula a distância certa

que nos pode salvar

o coração

enorme de

ternura sem dentes

 - falo gigante

que cresce cresce.

 

o poeta

sabe que é preciso fechar o olhos

para

poder continuar a amar.

*Apagamento, apropriação e reescrita do poema “O Retorno, 2016”, de Tatiana Faia, do seu livro: “Um quarto em Atenas” (2018). / "“TORNado” - Vítor Teves, Idealização: Setembro/Outubro; Realização: novembro de 2019.

 Nota: O apagamento, e tudo o que lhe seguiu, teve a autorização da autora do poema - Tatiana Faia.

Natureza (quase) morta

A senhora inglesa posa talvez
para um pintor imaginário que não  sabemos;  
ele   há-de fixar-lhe o corpo reclinado
o gesto de quem tenta  reter a última luz
da tarde.
No balcão raso  um limoeiro
botou raiz e frutos
e ela é  a personagem do livro que lê demoradamente,
sem cuidar de saber  de uma outra senhora 
que em Bruxelas negoceia, aos milhões,
a manutenção futura deste sol a baixo custo.

Às  vezes, muito  antes da leitura,
a senhora inglesa dedica  ao atento siamês
um falsete que só ele entende       
e  julga ser ainda escutada
por uns netos longínquos e  de olhos claros
que gritam e fazem caretas como os netos de toda a gente
mas  secretamente  lhe outorgaram já
o pequeno brexit familiar.

 (Cabanas de Tavira
2018)

Captura de Ecrã (9764).png

Carlos Carreiro - “Paisagem com natureza morta”, 1990.

"Fica" de Ingeborg Bachmann

06890004.jpg

Tradução: J. Carlos Teixeira

Fica

As viagens terminam,
não mais se sente o vento.
Tomba-te nas mãos
um frágil castelo de cartas.

As cartas são ilustradas
e mostram cada lugar.
Tu retrataste o mundo,
baralhando-o com a palavra.

Quão profundas as partidas
agora em curso!
Fica, para tirares a carta
com a qual se ganha.

in Anrufung des großen Bären, 1956


Bleib

Die Fahrten gehn zu Ende,
der Fahrtenwind bleibt aus.
Es fällt dir in die Hände
ein leichtes Kartenhaus.

Die Karten sind bebildert
und zeigen jeden Ort.
Du hast die Welt geschildert
und mischst sie mit dem Wort.

Profundum der Partien,
die dann im Gange sind!
Bleib, um das Blatt zu ziehen,
mit dem man sie gewinnt.

in Anrufung des großen Bären, 1956